Análise do Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil
Nelson Guimarães Proença
CONTRIBUIÇÃO DAS ENTIDADES MÉDICAS
A Academia de Medicina de São Paulo realizou, em 12 de março de 2014, importante Fórum sobre “Questões Relativas à Saúde, no Brasil”. A conferência de abertura versou sobre o Sistema Único de Saúde, e fui convidado para analisar o Sistema Único de Saúde de nosso País, o SUS.
Este é um tema complexo, de análise difícil, que pode ser abordado sob diferentes aspectos. Mais difícil e mais complexo, ainda, é apontar soluções para os graves problemas que atualmente o caracterizam. Vou procurar fazer meus comentários por tópicos, apenas com o objetivo de fazer sugestões que podem contribuir para um debate mais aprofundado.
SUS e Entidades Médicas
Para ilustrar esta exposição, vou inicialmente recordar o profundo envolvimento que as entidades médicas tiveram nas discussões que precederam a criação do SUS.
Foi no decorrer do ano de 1980 que a Associação Paulista de Medicina teve a iniciativa de promover um importante evento, no mês de junho, em Campinas, denominado “II Encontro de Defesa Profissional da APM”. O Presidente da entidade era o Dr. Aloísio Geraldo Ferreira de Camargo, e eu, o Diretor de Defesa Profissional. Trabalhamos para que ali estivessem representadas todas as Seções Regionais da APM e suas Sociedades Filiadas. Participaram também representantes do Conselho Regional de Medicina, das Faculdades de Medicina e dos Sindicatos Médicos do Estado de São Paulo. Ao todo, éramos duzentos os participantes, e tínhamos o objetivo de aprovar propostas visando a melhoria da Saúde Pública, esta encarregada da assistência à população brasileira.
As atividades e os estudos que precederam o evento foram bastante intensos. No evento, a conferência inicial foi feita pelo Professor José da Silva Guedes, Titular da Disciplina de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o qual nos trouxe uma visão abrangente da situação da Saúde no Brasil. Sua exposição contribuiu, muito, para orientar a abordagem dos pontos essenciais, que foram discutidos, de modo mais aprofundado, nos Grupos de Trabalho então constituídos. Ao final da jornada, foi realizada uma memorável Sessão Plenária, durante a qual foi aprovado o “Plano Nacional de Saúde” — foi assim que o denominamos — que passou a ser defendido pelos médicos do Estado de São Paulo.
Três anos depois, estive na Presidência da Associação Médica Brasileira e tive a oportunidade de coordenar o Primeiro Encontro Nacional de Entidades Médicas, o “I ENEM”, sempre trabalhando em conjunto com o Conselho Federal de Medicina, com a Federação Nacional dos Médicos e com a Confederação Nacional das Unimeds. Projetou-se então, em âmbito nacional, a participação do setor médico nas discussões sobre o tema, tendo como base o “Plano Nacional de Saúde” proposto pela APM.
Em consequência deste envolvimento com o tema, que sempre buscou e ofereceu soluções, foi importante a participação de nossas entidades representativas junto à Assembleia Constituinte que aprovou a Constituição de 1988. No biênio seguinte, nossas entidades permaneceram mobilizadas e estiveram presentes na discussão que se seguiu à Constituinte e que levou à aprovação da lei que criou o SUS, em 1990.
Recordo estes episódios, que fazem parte de um passado não tão recente, pois desejo dar ênfase ao fato de nossas entidades representativas terem um compromisso, de princípios, com a criação do SUS. É muito importante assumirmos nossa responsabilidade, pois não podemos deixar a impressão de que nos opomos ao SUS. Ao contrário, o que desejamos é identificar eventuais erros que foram praticados em sua estruturação e compreender equívocos que possam ter ocorrido, mas sempre com o objetivo de propor soluções novas, que ajudem a superar os graves problemas atualmente existentes. Este deverá ser o nosso papel, merecendo todo o nosso empenho.
Hierarquização do SUS
O SUS distribuiu as atenções à Saúde, corretamente, em três níveis de complexidade: o Primário, o Secundário e o Terciário.
Mas não ficou suficientemente esclarecido que toda a eficácia do sistema depende, essencialmente, do Sistema Primário, aquele que oferece as Atenções Básicas à Saúde. Este é o alicerce de toda a estrutura: ou a Atenção Básica funciona e desonera os demais níveis, ou não funciona bem e os sobrecarrega. Mas não basta obter um consenso em torno da importância fundamental da Atenção Básica à Saúde. É preciso criar, também, outro grande consenso, aceitando que a peça fundamental do SUS, para executar as Atenções Básicas, é a Unidade Básica de Saúde, a UBS. Insisto neste ponto: a peça fundamental é a UBS, e não o Programa Saúde da Família (PSF), não o Atendimento Médico Ambulatorial (AMA) adotado na Capital de São Paulo, não é este programa mal formulado, do Governo Federal, chamado “Mais Médicos”.
O grande desafio, com o qual nos defrontamos, é como desenvolver uma UBS resolutiva, que cumpra seu papel. Repete-se: ou elas funcionam e o SUS estará apto a funcionar, ou elas não funcionam e o SUS jamais irá funcionar. A UBS é a “Porta de Entrada” do Sistema e, caso tenha sua estrutura bem planejada, com ações bem executadas, irá resolver o máximo possível da demanda, recorrendo criteriosamente aos demais níveis de Atenções à Saúde.
Importantíssimo destacar que, do ponto de vista do Orçamento, as ações e as despesas da Unidade Básica de Saúde são absolutamente previsíveis.
O degrau seguinte, segundo na hierarquia, é formado pela Rede Secundária. Aqui se situam os Ambulatórios de Especialidades, os Laboratórios que executam os exames complementares, os hospitais que recebem os pacientes para tratamento médico-cirúrgico.
Não cabe, na presente exposição, entrar no mérito das ações que o Nível Secundário deve executar, pois esta é outra exaustiva discussão. Mas cumpre destacar que, do ponto de vista orçamentário, suas ações são razoavelmente previsíveis.
E há o terceiro nível hierárquico, em que se desenvolvem as ações mais complexas: transplante de órgãos, cirurgia cardíaca, terapia intensiva, oncologia etc. Para o objetivo de minha exposição, a respeito da Atenção Terciária, quero fazer uma única observação. O avanço constante da tecnologia, aplicada à Medicina, é ilimitado.
Em consequência desta inatingível fronteira do conhecimento, e novamente voltando o olhar para a questão de Orçamento, temos de admitir que as Atenções Terciárias são absolutamente imprevisíveis.
Aí está! Do ponto de vista do financiamento às ações de Saúde, fomos do absolutamente previsível, ao razoavelmente previsível, e ao absolutamente imprevisível.
UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE
O médico generalista: ele existe?
Vou pincelar, agora, o que se passa, atualmente, na rede básica. É claro que a resolução dos problemas de quem a procura depende do nível de conhecimentos dos que nela trabalham e dos equipamentos disponíveis. A resolução é dependente do nível de preparo dos enfermeiros, dos assistentes sociais, dos psicólogos que nela trabalham, mas, sobretudo, é dependente dos médicos.
Qual deve ser a formação deste médico?
Um médico que atenda um pouco de tudo, mas principalmente a demanda em Clínica Médica, em Pediatria, em Ginecologia e Obstetrícia. Na época em que foi criado o SUS, acreditava-se, de modo quase unânime, que tanta qualificação poderia estar reunida em um só profissional, o Médico Generalista. Criou-se uma figura lendária, mas aceita de modo geral. A este respeito, minha opinião foi discordante, pois sempre considerei fantasiosa a imagem que se criou deste Generalista. Ele precisaria ser nada menos do que um supermédico. Onde encontrá-lo? Não há resposta para esta pergunta.
A propósito deste ponto, quero recordar que, no início do Século XX, um bom Tratado de Medicina tinha por volta de umas oitocentas, talvez mil páginas. Exemplares desses tratados podem ser encontrados em bibliotecas de Faculdades de Medicina, preservados como curiosidades, como relíquias históricas. Pois bem, neste início do Século XXI, passados apenas 100 anos, o que ocorre?
Vou tomar como exemplo a minha área de especialidade, a Dermatologia. Aqui, um bom tratado chega até a cinco mil páginas, como acontece com o Rook’s Textbook of Dermatology. Multiplique-se agora este número pelo número de especialidades, por exemplo, multiplique-se por 20. Teremos algo em torno de 100 mil páginas a serem estudadas, para conhecer a Medicina de nossos dias. E há um problema ainda maior: são milhares as revistas médicas espalhadas pelo mundo, publicando acima de meio milhão de trabalhos, todos os anos. Qualquer pessoa pode entrar na Internet para confirmar isso. A consequência desse constante avanço do conhecimento é óbvia: o que é hoje atual, já amanhã deixa de sê-lo.
Volto, então, ao Generalista. Ele só se justifica em locais com escassas estruturas, onde sua presença será melhor do que nada. Um exemplo deste “melhor do que nada” é dado pelo recente programa do Governo Federal, denominado “Mais Médicos”, que procura colocar na linha de frente um profissional com formação em generalidades. Não se deve esperar que ele dê adequado nível de resolução à demanda existente nas regiões periféricas, mas tão somente que ele faça um encaminhamento aos níveis mais resolutivos.
Organizando Melhor as UBS
Considero essencial iniciar a solução dos graves problemas atuais organizando melhor as UBS. Cheguei a fazer uma proposta, nesse sentido, em um Seminário sobre Municipalização do SUS, realizado em 1995, do qual foi o Coordenador. O SUS era de introdução recente, havia empenho em organizar o atendimento à população, cumprindo os objetivos por ele propostos. O Seminário a que me referi foi realizado na Câmara Municipal da Capital de São Paulo e contou com a participação de pessoas de mérito, das mais eminentes, na área de Saúde do Estado de São Paulo.
Coube-me abordar a questão de como organizar as Unidades Básicas, tendo como objetivo dar a elas condições de resolver a demanda assistencial. Nessa época, já tinha a convicção de que uma atenção resolutiva estava acima da competência de um Médico Generalista, caso este fosse o elemento básico do Sistema. Fiz proposta diferente. Insisti em que seria preciso designar para as UBS não apenas um, mas sim três médicos: o Clinico, o Pediatra e o Ginecologista/Obstetra. Um trio de profissionais que poderia resolver, certamente, algo em torno de 95% dos casos que compõem a demanda. Estimava que apenas 5% dos pacientes seriam encaminhados para atendimento em nível secundário, não incluída aqui a parte laboratorial. Havendo resolução na base, não haveria congestionamento da atenção secundária.
Minha proposta não foi acolhida. Insistiu-se na ideia do Médico Generalista. Entre os que discordaram, vários dos participantes assumiram, posteriormente, altos cargos na administração pública da Saúde, tanto em São Paulo como em Brasília. Coerentes com suas convicções, essas pessoas aplaudiram a contratação de Generalistas para as UBS. Muitos desses técnicos contribuíram, depois, para aumentar os equívocos, confundindo o papel das UBS com as finalidades do PSF.
Nota sobre o PSF
Mas o que era, mesmo, o PSF?
Iniciou-se como um programa idealizado pelo então Ministro Adib Jatene, no começo dos anos 1990. Baseava-se na organização de equipes para o trabalho de campo junto às populações mais distantes, que estivessem sem contato com as UBS. A figura básica do programa era o Agente Comunitário de Saúde, recrutado no meio da própria população que iria ser assistida e que ali mesmo deveria residir. Com treinamento adequado, ele seria capaz de levar atenções básicas, sobretudo as ações preventivas, para populações que vivem na margem da sociedade. O PSF permitiu criar um elo entre o SUS e essas populações. Foi um enorme êxito, desde o princípio, em regiões do Nordeste e, depois, da Amazônia. Importante: não se pretendia substituir as UBS pelo PSF.
O PSF alcançou igual êxito nas periferias das grandes cidades. Abriu-se então um caminho para preencher vazios da área de Atenção Básica, aproximando populações que se mantinham fora do alcance das UBS. Frise-se que o PSF não é substituto da UBS, mas seu complemento.
DESAFIOS A ENFRENTAR
São muitos os problemas que precisam ser resolvidos, mas eles podem ser enquadrados, de um modo geral, em uma das três seguintes vertentes: questões de Estrutura, questões de Financiamento, questões relacionadas à Gestão.
Recentemente, abordei essas questões em artigo publicado no Suplemento Cultural da Revista da APM (2013, 251: 6-7). Nesse artigo, insisti na proposta de criar um modelo de UBS a ser adotado em todo o País. No que se refere ao atendimento médico, continuo acreditando que é fundamental substituir a figura do Generalista por um trio de médicos: o Pediatra, o Clínico e o Ginecologista/Obstetra.
Quanto ao PSF, não há dúvida de que ele deve fazer parte da programação da UBS, mas não deve substituí-la, como vem atualmente acontecendo. O PSF deve executar sua função de ligação entre a UBS e a população local, recuperando-se, assim, a proposta inicial feita por seu criador, o Ministro Adib Jatene.
A segunda questão é a do Financiamento. Não se pode mais falar no financiamento do SUS como um todo. É indispensável que o orçamento seja específico para cada um dos diferentes níveis de Atenções à Saúde. Defendo uma alteração na lei que criou o SUS, abordando um ponto que considero fundamental: cada nível do Sistema de Saúde precisa ter orçamento próprio! É a única maneira de garantir os recursos necessários para o nível básico, assegurando seu êxito. Considero esta uma questão essencial.
Agora, a questão da Gestão. A administração pública, nos âmbitos federal, estadual e municipal, trabalha exclusivamente com resultados quantitativos, com o número de atendimentos feitos. Não há metas de qualidade a alcançar e, portanto, inexistem mecanismos de avaliação dos resultados obtidos. Já disse e repito: não havendo a devida resolução das demandas, na Atenção Básica, irá ocorrer a sobrecarga dos demais níveis, o Secundário e o Terciário.
Um dos desafios com que se defronta a gestão do SUS é a busca da qualidade na Atenção Primária. Entre uma série de providências que precisam ser tomadas, há três aspectos que me parecem essenciais. Primeiro, é necessário fazer a avaliação do desempenho da UBS, a partir do estabelecimento de índices e de metas de referência; segundo, é preciso introduzir protocolos para atender e acompanhar os pacientes; e, terceiro, é necessário criar condições para a Educação Continuada dos Profissionais de Saúde.
Judicialização da Medicina
Cometeu-se um enorme equívoco (em relação à Saúde) ao se aprovar a Constituição de 1988. Foi criada para o Estado uma obrigação inatingível: “Saúde é Dever do Estado e Direito do Cidadão”. É uma redação limpa, clara, sintética, mas inteiramente idealista, pois tornou ilimitado o Dever do Estado. Sendo ilimitado o Dever, mas limitado o Orçamento, há para a Administração da Saúde, no Brasil, situação fantasiosa, inalcançável. Fantasiosa, pois o Estado tem a obrigação de oferecer “Tudo a Todos”. Inalcançável, pois o avanço ininterrupto dos recursos postos à disposição da Medicina não tem limites.
É exatamente assim, como uma obrigação irrecusável, que a Justiça interpreta o texto Constitucional, intimando a Administração Pública a cumprir suas decisões. O resultado prático deste conceito de “Dever”, que gera uma obrigação infinita, resulta na crescente intervenção do Poder Judiciário na área da Saúde. Este atende o que lhe é demandado, obrigando o Poder Público a atender o solicitado. Este processo, crescente, passou a ser conhecido como “Judicialização da Saúde”.
É um processo perverso. As determinações, emanadas da Justiça, não levam em consideração se existem ou não verbas consignadas para atender a tais demandas individuais, específicas. Também não há preocupação com a necessidade de realocar verbas da Atenção Primária, ou da Atenção Secundária, causando sérios problemas para estes níveis de Atenções, resultando em dificuldades para seu desempenho.
Está consagrado na Constituição que o “Dever do Estado” tem de ser cumprido. Há não muito tempo, perguntei a representantes do Judiciário como esta questão poderia ser revista. A resposta? “Mude-se a Constituição.”
Creio, sinceramente, que a Constituição precisa ser reformulada nesta questão conceitual, fundamental. Mude-se o texto constitucional para algo como: “Atenções à Saúde e à Educação, Acesso ao Trabalho, são Direitos do Cidadão, exigindo o máximo empenho do Estado, para serem atendidos”.
Conclusões
São muitos os problemas que precisam ser resolvidos, mas eles podem ser enquadrados em uma das três vertentes: Estrutura, Financiamento e Gestão.
(1) Quanto à Estrutura: criar um modelo de UBS que possa ser adotado em todo o País, baseado na presença de um trio de médicos: o Pediatra, o Clínico e o Ginecologista/Obstetra.
(2) Quanto ao Financiamento: é indispensável que o orçamento seja específico para cada um dos diferentes níveis de Atenções à Saúde.
(3) Quanto à Gestão: uma série de providências precisam ser tomadas em busca da qualidade do atendimento: é necessária a avaliação permanente, a partir do estabelecimento de índices e de metas de referência; é preciso introduzir protocolos para atender e acompanhar os pacientes; e é necessária a Educação Continuada dos Profissionais de Saúde.
É óbvio que discussão tão complexa vai muito além dos pontos destacados, mas foram discutidos os mais importantes, para servirem de referência para uma abordagem mais aprofundada.
É por aí que temos de caminhar. Não podemos aceitar a imposição da condição de figurantes das jogadas de marketing executadas pelo Governo Federal. Precisamos ser protagonistas, em defesa dos interesses maiores de nossa população. Estou convicto de que foi este o objetivo de nossa Academia ao organizar o presente Fórum.
Nelson Guimarães Proença
Ex-Presidente da Associação Paulista de Medicina
Ex-Presidente da Associação Médica Brasileira
Membro da Academia de Medicina de São Paulo