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O passarinho médico e o médico do passarinho

01.12.2014 | Gerais

João Aléssio Juliano Perfeito

Piu! Piu! Piu! 

“Que som mais bonito desse passarinho na nossa sala de aula, onde ele está?”, exclamava uma estudante da turma que se formaria em 1966, no primeiro ano do curso na Escola Paulista de Medicina (EPM), e todos olhavam procurando o passarinho que emitia tão belo ruído, mas ninguém o encontrou. 

No outro dia novamente, “Piu! Piu! Piu!”, “que lindo som” exclamou novamente a empolgada estudante, “precisamos encontrá-lo, onde ele se esconde nessa sala, será que está na janela?”. E nada do passarinho. 

O terceiro dia começava na sala de aula com “Piu! Piu!”, mas antes do terceiro piu, o professor se aproximou de uma cadeira de estudante e, com ironia, também exclamou “que passarinho mais lindo!”. Lá estava o Passarinho: era o aluno José Carlos de Andrade com a sua criatividade, imitando um passarinho; o que ele havia feito por todos os dias anteriores, até ser encontrado e desmascarado. Nesse momento, ganhou o apelido que o acompanharia por toda a vida, e começaram também as inúmeras histórias de brincadeiras com colegas. 

O nosso Passarinho se formou na EPM e tornou-se um grande cirurgião cardíaco, de uma habilidade invejável e de uma criatividade e capacidade de ações rápidas sem limites, e, como hobby, era ainda mágico, tinha um arsenal completo de mágicas até mesmo com pombinhas guardadas em casa. Pude testemunhar algumas histórias e muitas outras me foram contadas, prometo escrevê-las aos poucos e estimulo outros colegas, que viveram e fizeram parte delas, a também contá-las. 

Escolhi para hoje uma história passarinhesca que se passa com a sua principal vítima, o Dr. Vicente Forte, um dos vultos da cirurgia brasileira, um dos ídolos do Passarinho, que nem por isso escapava das “maldades” do fã. Ambos trabalhavam juntos nos primórdios da cirurgia cardíaca e no início das UTI de pós-operatório. Época de verdadeiros heróis, que na década de 1970 operavam os doentes durante o dia e davam os plantões noturnos cuidando desses mesmos doentes, em um revezamento de poucos jovens cirurgiões liderados pelo professor Costabile Gallucci. Esta história eu não presenciei, mas os dois protagonistas me contaram. 

E lá estava o jovem Vicente em mais um plantão na precária UTI daquele tempo, cujo principal aparelho era a capacidade e perspicácia do plantonista — o dia fora cansativo e o plantão noturno, infernal. Vicente, nessa noite, heroicamente cuidava de doentes graves, o que o impedia de descansar. No final do plantão, por volta das 6:30 da manhã, extremamente cansado, mas sem abandonar os doentes, resolve esticar as pernas e deitar em uma cama hospitalar livre, no “salão da UTI” ao lado dos doentes, enquanto aguardava o novo plantonista, mas, vencido pelo cansaço, em alguns instantes acabou dormindo. 

Eis que surgem o novo plantonista, era o Passarinho, e, com ele, uma nova turma de alunas do curso de enfermagem em estágio no Hospital São Paulo. Vendo aquela cena, a imaginação passarinhesca floresceu. Identificou a aluna mais robusta da turma e pediu que ela, em caráter de urgência, preparasse uma medicação para injeção e ministrasse naquele “grave paciente” que estava deitado no leito, mas antes, com a sua peculiar didática e imaginação, orientou a aluna, “você deve se impor aos pacientes rebeldes, pois existem doentes que, apesar de precisarem de medicação, não querem recebê-la, por exemplo, esse que você vai atender, que, para fugir das medicações, costuma dizer que é médico”, maldade pura. E assim foi a jovem aluna em direção ao seu “rebelde paciente”, quase desmaiado no leito. 

A cena seguinte é de a jovem aluna se aproximando do leito hospitalar e o jovem médico, agora transformado em paciente “passarinhesco”, dormindo. Ela se aproxima e gentilmente acorda-o, dizendo com voz educada, mas firme: “Estou aqui para aplicar essa injeção no senhor”, ao que o recém-acordado Vicente, não negando a sua origem italiana exclamou: “que injeção o quê, eu sou o médico do plantão!”, ao que a aluna, com a firmeza orientada há pouco, afirma: “médico coisa nenhuma, sei lidar com pacientes rebeldes!”. O resultado final dá para imaginar — conta-se que ele não recebeu a injeção, mas foi por pouco, o algodão com álcool chegou a ser passado, para delírio do Passarinho, que assistia à cena pelo vidro da UTI. Ninguém sabe como o Vicente não esbofeteou o José Carlos no próprio corredor da UTI. 

Mas o tempo passou, o Vicente continuou vítima de muitas outras “pegadinhas” do Passarinho e os dois se tornaram amigos para toda a vida. Quis o destino que o Passarinho, apesar de não fumar, tivesse um tumor de pulmão, e escolhesse o Dr. Vicente Forte para ser o seu cirurgião. Sou testemunha da dedicação do médico ao paciente e também da “capacidade infinita” do Passarinho, que, mesmo doente no hospital, continuava pregando peças no Vicente e nas enfermeiras. Ele tinha uma manobra que fazia sumir o seu próprio pulso radial e assim se divertia quando vinham medir a pressão ou “pegar” o pulso. A gravidade do caso foi maior do que toda a luta, mas, durante o épico e longo período de tratamento, o Vicente, já com as coronárias penduradas e com as pontes obstruídas, teve uma arritmia, que o levou a necessitar de um marca-passo. E em quem ele confiaria para colocar o dispositivo? Ninguém menos que um dos maiores especialistas da área, ele mesmo, o Dr. José Carlos de Andrade. 

O Passarinho saiu diretamente do seu tratamento, já bem debilitado, para colocar o marca-passo no seu médico e, mais que isso, no seu mestre, amigo e na principal vítima de suas armações. Com a sua habilidade, o procedimento foi um sucesso, mas sou testemunha de que o Passarinho não perdeu a oportunidade de fazer piadas e brincadeiras enquanto colocava o dispositivo. 

Infelizmente para a medicina brasileira e para todos que puderam conviver com ambos, a doença dos dois progrediu e, com uma mínima diferença de tempo, partiram deste mundo, mas reza a lenda que no outro mundo o Vicente está ouvindo: Piu! Piu! Piu!

Novas histórias virão… 

João Aléssio Juliano 

Perfeito Professor Associado da Disciplina de Cirurgia Torácica 

do Departamento de Cirurgia da EPM/Unifesp 

Cirurgião Torácico