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Os quatro mandamentos da saúde pública

01.12.2014 | Gerais

Assistência médica

Nelson Guimarães Proença

Introdução

Os Coordenadores deste encontro entenderam que é preciso esclarecer os fundamentos que devem alicerçar a organização de um Sistema Estatal de Saúde. Daí o título do Encontro: “OS QUATRO MANDAMENTOS DA SAÚDE PÚBLICA”. Fui convidado para abordar um tema polêmico e espinhoso, para o qual há muitas sugestões e poucas respostas definitivas: a “Assistência Médica”. Para atender aos Coordenadores, devo procurar discutir o que é básico, avaliando o que se faz e ousando sugerir o que deve ser feito. 

Sim, certamente foi uma ousadia de minha parte aceitar tal convite, pois o Sistema Público de Saúde do Brasil, o SUS, tem sido objeto de permanentes e justificadas críticas, vindas de todos os lados: dos usuários, dos prestadores de serviços, da imprensa, do próprio Governo. O descontentamento é universal, incontáveis são as críticas, também inúmeras são as análises e as propostas que as acompanham. Com quem deve estar a razão? Não há resposta certa para essa pergunta, não vejo por enquanto nenhum consenso sobre as medidas que possam, efetivamente, superar os problemas atuais. 

Com esta introdução, estou, de certa forma, fazendo uma justificativa prévia através da qual espero contar com a benevolência dos que me leem, com sua compreensão, pedindo que compreendam minhas limitações. Tentarei trazer minha contribuição. 

Em primeiro lugar, é preciso encontrar o método mais apropriado para a discussão de um tema tão controvertido como este, que envolve múltiplos fatores e interesses. Diante­ de tão grande controvérsia, creio que cabe usar, como método,­ a divisão do todo nas partes que o constituem, analisando cada uma separadamente, para só depois fazer a síntese final. Ao se fazer a análise, parte por parte, é possível encontrar concordância sobre as questões polêmicas, identificando os pontos frágeis que precisam ser fortalecidos, os desafios a serem superados e os instrumentos que precisam estar dispo­níveis para alcançarmos os fins pretendidos. Com esta abordagem, estamos simplesmente aplicando o método proposto há séculos por Descartes, sendo por isso mesmo chamado Método Cartesiano, e aceito pela moderna Filosofia. 

Vamos, então, às preliminares da discussão. 

O SUS foi idealizado como uma estrutura piramidal, cada patamar representando um dos estágios das Atenções à Saúde. Toda pirâmide necessita ter base larga, é ela que assegura a solidez do conjunto. Não se deve inverter a posição da pirâmide, colocando o vértice para baixo, pois o Sistema não conseguirá se manter em pé. Assim, não devemos iniciar a discussão pelas Atenções Superespecializadas para depois chegar às Básicas. 

Isso significa que o SUS tem de ser estruturado a partir da Atenção Primária à Saúde, vindo, a seguir, a Atenção Secundária e, só então, a Terciária. A ordem é essa e, se não for obedecida, a discussão não nos levará a lugar nenhum. Vejo diariamente, pela imprensa, que a discussão está centrada em problemas relacionados com as Atenções Secundária e Terciária, pouco se fala sobre a Atenção Primária. Discussão que é assim conduzida está mal conduzida, pois não alicerça as ações a partir de uma sólida base. 

O que é, então, uma base sólida? 

Pretendo destacar alguns pontos, que me parecem fundamentais e que não vêm sendo adequadamente discutidos e encaminhados. 

Unidade Básica de Saúde, UBS 

Ao iniciar a discussão sobre as UBS, quero destacar que é um equívoco aceitar sua substituição pelo PSF, o Programa Saúde da Família. Mais adiante, voltarei a falar sobre esse ponto. 

As UBS são a porta de entrada do Sistema, todos estão de acordo em relação a isso. Mas é uma porta de entrada com função precípua de fazer uma triagem adequada? Ou sua função precípua é atingir os mais altos índices de resolução da demanda? Estas alternativas não têm caráter excludente entre si, mas as prioridades precisam ser bem definidas. 

O horizonte de trabalho das UBS não pode ser reduzido à simples triagem de pacientes, providenciando seu encaminhamento para os níveis de atenções mais diferenciados. Isso é o que se faz hoje, na maior parte do País. Seu horizonte deve ser muito mais amplo, deve possibilitar obter a mais alta resolutividade, algo em torno de 95% dos casos que a procuram. Para possibilitar tal objetivo, é preciso dotar a UBS de estrutura e de meios para alcançar altos índices de soluções para os problemas médicos trazidos pela demanda. 

Em relação à ASSISTÊNCIA MÉDICA — este é o “Mandamento” que me coube analisar —, é preciso contar com um profissional que tenha boa formação, motivado para o trabalho que executa. Em postos avançados, onde há menor concentração populacional e/ou as características ambientais são mais adversas, justifica-se dar importância ao médico generalista. 

Mas, nos centros urbanos, onde hoje se concentra mais de 90% da população brasileira, a estrutura precisa ser mais completa. Durante toda a minha vida — e esta já se torna bastante longa —, tenho observado que o melhor desempenho ocorre em unidades que contam com assistência de especialistas de três diferentes áreas: Medicina Interna, Pediatria, Ginecologia/Obstetrícia. Em uma jornada de trabalho desta equipe, é resolvida a demanda da maioria dos pacientes, em índices sempre acima de 90%. São bem selecionados e encaminhados os casos que necessitam de Atenções Secundárias à Saúde. 

Recorde-se que pode não haver demanda suficiente para manter tais profissionais em uma única UBS pelos cinco dias úteis da semana. Muito bem, se isso ocorrer, o profissional pode atender em duas UBS, em diferentes dias da semana, sendo mais bem aproveitado sem sobrecarregar financeiramente o Sistema. 

Agora, um ponto importante, a efetiva profissionalização do pessoal da UBS, buscando torná-lo solidário com a proposta do SUS e comprometido com as finalidades da UBS. Isso passa, em primeiro lugar, pela questão da REMUNERAÇÃO. Para os médicos, ou outros profissionais, a remuneração deve ser atraente e, claro, precisam ser adotadas regras de recomposição salarial que permitam cobrir a desvalorização da moeda e garantir seu poder de compra. 

Há duas outras questões tão importantes quanto esta que não têm sido corretamente analisadas. A primeira diz respeito à criação de uma CARREIRA FUNCIONAL, que torne o emprego público ainda mais atraente, dando ao médico a sensação de que fez a escolha certa, de que não se trata apenas de uma ocupação provisória. A segunda questão é a criação do DUPLO VÍNCULO, isto é, ao médico da UBS deve ser concedida opção de trabalhar em um segundo período, em Unidade de Atenção Secundária. Por exemplo, em um hospital ou em um centro de especialidades, da rede, recebendo adicional pela segunda tarefa. 

Considero importante destacar esses dois pontos, pois estou convencido de que a fixação de profissionais diferenciados no SUS depende da carreira funcional e do duplo vínculo. Destaco também que essas duas questões, que levantei em relação ao médico, interessam também aos demais profissionais de saúde. 

Gestão e financiamento  

Em artigo recente, publicado no Suplemento Cultural da Revista APM, n. 257, maio 2014, abordei duas questões, a da GESTÃO e a do FINANCIAMENTO, as quais considero essenciais para a organização do SUS. É oportuno recordá-las resumidamente. 

A questão da GESTÃO: “A administração pública, nos âmbitos federal, estadual e municipal, trabalha exclusivamente com resultados quantitativos, com o número de atendimentos feitos. Não há metas de qualidade a alcançar e, portanto, inexistem mecanismos de avaliação dos resultados obtidos. Já disse e repito: não havendo a devida resolução das demandas, na Atenção Básica, ocorrerá a sobrecarga dos demais níveis, o Secundário e o Terciário”. 

Um dos desafios com que se defronta a gestão do SUS é a busca da qualidade na Atenção Primária. Entre uma série de providências que precisam ser tomadas, há três aspectos que me parecem essenciais. Primeiro, é necessário fazer a avaliação do desempenho da UBS, a partir do estabelecimento de índices e de metas, de referência. Segundo, é preciso introduzir protocolos para atender e acompanhar os pacientes. Terceiro, é necessário criar condições para a Educação Continuada dos Profissionais de Saúde.” 

Já em relação ao FINANCIAMENTO, há um aspecto importante que precisa ser destacado. Construída a rede de UBS, distribuída por todo o País, com instalações, atribuições, pessoal, tudo perfeitamente definido e igualmente reproduzido, é perfeitamente previsível estabelecer o seu orçamento. Já quanto à Atenção Secundária à Saude, oferecida na rede assistencial constituída por hospitais-centros de especialidades-laboratórios, o orçamento é apenas razoavelmente previsível. Quando passamos para as Atenções de Nível Terciário, a situação se complica muito: o orçamento é absolutamente imprevisível. 

Aí está! Do ponto de vista do financiamento para as ações de saúde, fomos do absolutamente previsível ao absolutamente imprevisível, passando pelo razoavelmente previsível. 

Volto agora ao artigo já citado. 

“Não se pode mais falar no financiamento do SUS como um todo. É indispensável que o orçamento seja específico para cada um dos diferentes níveis de Atenções à Saúde. Defendo uma alteração na lei que criou o SUS, abordando um ponto que considero fundamental. Cada nível do Sistema de Saúde precisa ter orçamento próprio! É a única maneira de garantir os recursos necessários para o nível básico, assegurando seu êxito. Considero esta uma questão essencial.” 

PSF, o Programa Saúde da Família  

No início da década de 1990, era Ministro da Saúde o Professor Adib Jatene, e um grupo de trabalho, constituído naquela época, estudou um novo modelo de atuação para alcançar populações desassistidas, muitas vezes isoladas, o que particularmente ocorria no Nordeste e na Amazônia. 

Foi, então, imaginada a ação por meio de um grupo operacional constituído por agentes comunitários de saúde (ACS), que fariam visitas à comunidade para conhecer seus problemas, acompanhar quando já tivessem conduta traçada (mas que estavam longe da rede assistencial), também praticando alguns pequenos atos de apoio. Os ACS fariam a ligação entre o SUS e as comunidades marginalizadas. A propósito, este agente comunitário deveria ser recrutado na própria comunidade local e ali deveria residir, recebendo treinamento para executar seu trabalho. Também receberia uma “bolsa” para recompensar sua atividade. O sucesso do PFS foi estrondoso, desde a sua formação. Mostrou ser um modelo apropriado, para os fins a que se propunha. 

Lamentavelmente, muitas prefeituras municipais não compreenderam o verdadeiro significado da proposta do PSF: substituíram suas UBS por programas de PSF. Chegaram mesmo a transferir o pessoal alocado nas UBS para compor equipes de PSF, diminuindo ainda mais a possibilidade de dar resolutividade ao SUS. Isso não pode continuar a acontecer, pois o PSF é uma ação avançada da UBS, um complemento, mas jamais deve ser seu substituto. 

Conclusões  

Para atingir nosso objetivo, penso que a discussão deva se desdobrar em três itens: qual a estrutura mais adequada; quais os mecanismos de controle de resultados; e qual a indispensável cobertura orçamentária. 

(1) Quanto à Estrutura — Criar um modelo de UBS que possa ser adotado em todo o País, baseado na presença de um trio de médicos: o pediatra; o clínico; e o ginecologista/obstetra. 

(2) Quanto ao Financiamento — É indispensável que o orçamento seja específico para cada um dos diferentes níveis de Atenções à Saúde, não podendo ser remanejado de um nível de Atenções para outro. 

(3) Quanto à Gestão — Uma série de providências precisam ser tomadas, em busca da qualidade do atendimento. É necessária a avaliação permanente, a partir do estabelecimento de índices e de metas, de referência. É preciso introduzir protocolos para atender e acompanhar os pacientes. É necessária a educação continuada dos profissionais de saúde. 

É óbvio que discussão tão complexa vai muito além dos pontos que destaquei. Mas considerei importante que fossem destacados, mais para servirem de referência, para uma discussão mais aprofundada. 

Nelson Guimarães Proença 

Professor Emérito da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Membro da Academia de Medicina de São Paulo, 

Ex-presidente da Associação Paulista de Medicina, 

Ex-presidente da Associação Médica Brasileira, Ex-secretário de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social