PortugueseEnglishSpanish
Notícias

Carta que jamais gostaria de ter recebido

17.06.2015 | Gerais

Helio Begliomini

Dizer que somos insubstituíveis é uma redundância dissimulada, pois é uma verdade insofismável do ponto de vista biológico. Embora sejamos semelhantes, cada qual nasce com caracteres próprios tanto no físico como no psíquico, o que nos dá a certeza de que somos seres únicos e irrepetíveis. Ao contrário, somos facilmente substituíveis em nossas funções e atribuições, pois todos temos um prazo de validade ou de funcionalidade. Isso torna a vida mais colorida e versátil, além de favorecer o progresso. 

Nesse contexto, entretanto, existem pessoas singulares, portadoras de uma fragrância agradável, que possuem conteúdo, que têm assunto para conversar, que cativam, que fazem falta quando ausentes, que colaboram para minorar o sofrimento alheio, que se sobressaem sem ostentação, que congregam sem ser pretensiosas, que, enfim, possuem um brilho próprio, cuja luminosidade permite aos seus semelhantes uma melhor visão de quais sendas seguir. 

Tive e tenho o privilégio de conhecer e de conviver com centenas de pessoas que sabem fazer a diferença no trabalho, na família, em associações ou nas comunidades a que pertencem. Entre tantas, me inspirou neste momento particular a amizade de um amigo especial. Conheci-o dentro da família rotária à qual pertenceu, uma vez que seu estimado Rotary Clube São Paulo Água Fria Centenário tinha sido extinto há menos de um ano, e ele ainda não havia decidido a qual, dentre tantos assédios, deveria ceder em nova admissão. Aliás, por uma decisão unânime dos membros do Rotary Clube de São Paulo Tremembé, tive, na condição de presidente do ano rotário 2011/2012, o privilégio de lhe conceder o insólito título de membro honorário, fato que testemunha a benquerença que ele tinha entre tantos amigos. Ademais, motociclista, sua presença fazia-se freq Motorcycling Rotarians.uente em eventos e viagens do grupo rotário de companheirismo IFMR — International Fellowship of Motorcycling Rotarians. 

Contudo, nossas vidas também se cruzariam profissionalmente, visto que havia me procurado duas vezes para consultas médicas e esclarecimentos. 

Com seus aproximados 2 metros de altura, o que ele aparentava de tamanho, tinha exponencialmente muito mais em alegria, amizade, cultura, inteligência, espírito gregário, atenção e ajuda ao próximo. 

Essa grande figura humana e intelectual a que me refiro chama-se Gláucio Gonçalves Tiago. Graduado em ciências biológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (1984) e em ciências jurídicas e sociais pela Universidade Santa Cecília (1992), obteve, na Universidade de São Paulo, os títulos de mestre (2000) e o de doutor (2005) em ciência ambiental. Com especialização em ciência pesqueira no Japão pelo Kanagawa International Fisheries Training Centre, galgou a condição de pesquisador científico do Instituto de Pesca — única instituição científica no Estado de São Paulo que desenvolve pesquisas em pesca extrativista —, e, posteriormente, seu consultor sênior. 

Atuando principalmente com aquicultura, gestão ambiental, pesca, desenvolvimento sustentável, governança e direito ambiental, seu nome se tornou profissionalmente conhecido quer pela participação e apresentação de estudos em congressos, quer pela publicação de trabalhos científicos e artigos na mídia, quer pela autoria de capítulos em livros ou pela publicação de cinco obras de sua lavra, algumas com mais de uma edição: Aquicultura, Meio Ambiente e Legislação (1ª edição 2002, 2ª edição 2007 e 3ª edição 2010); Governança e Sustentabilidade Ambiental: A Aquicultura na Região Metropolitana de São Paulo (2007); Ideário para a Sobrevivência Social Humana: O Pensamento como a Última Fronteira Humana a ser Conquistada (2009); Ementário da Legislação de Aquicultura e Pesca do Brasil (1ª edição 2009 e 2ª edição 2010); e Mitos das Águas. A Cultura Haliêutica e seus Poderosos Significantes Ancestrais (2010). 

Mas não somos perfeitos nem sempre e nem tanto. Fui súbita e desastrosamente surpreendido três vezes por ele recentemente. A primeira foi quando recebi o comunicado de seu falecimento. A segunda, logo em seguida, foi tomar ciência de que ele próprio, com todos seus belos predicados, tinha dado fim à própria vida, exatamente na infância da maturidade de seus 51 anos!1 Esse foi um golpe duríssimo para o seu único filho, seus familiares e uma miríade de admiradores. O que o teria motivado à tão violenta decisão? O que poderia tê-lo desgostado da inefável e irrepetível arte de viver? O que o teria desmotivado da salutar convivência que tinha com seus amigos? Como teria reunido tamanha coragem e frieza para premeditar e planejar tudo como o fez? É difícil encontrar respostas para essas e outras perguntas quando se conhece a personalidade de alguém tão dócil, educado e bem-sucedido profissionalmente como era o Gláucio Tiago. Ele havia me telefonado há um mês e meio, cumprimentando-me pelo meu aniversário!… Havia conversado muito com a Aida, minha esposa, 15 dias antes na reunião do Rotary Club de São Paulo Mandaqui!… Tinha ido há poucos dias com o companheiro Miqueleti na Subprefeitura de Jaçanã para resolver pendências!… 

Mas, desafortunadamente, ele ainda me surpreenderia mais uma vez e nesta, de forma personalizada. Logo após seu enterro, o casal Davanzzo e Maria, amigos do estimado Rotary Club de São Paulo Tremembé, entregaram-me uma carta dele a mim endereçada, assim como houvera feito com outras pessoas. Com certeza, essa foi uma missiva que jamais gostaria de ter recebido, apesar da especial atenção depositada, pois, com certeza, ele não teria redigido correspondências de despedida se o destino tivesse sido outro e o poupado deste fatídico fim. 

Guardei essa correspondência lacrada por diversos dias, pois não reunia coragem para abri-la. Após três semanas, com muita relutância e apreensão, consegui abrir delicadamente o envelope que, manuscrito, assim estava endereçado: “Ao amigo, Dr. Helio Begliomini”; e no seu reverso: “Gláucio Tiago”. Já havia me surpreendido pela carta e muito mais ainda pelo seu conteúdo, pois não encontrei um texto, mas um cheque do Banco Santander. Estava cruzado e nominal à minha pessoa, com a data de 9 de novembro de 2012 — a mesma data em que estivera comigo no consultório há um ano e meio pela última vez. O valor do cheque era sete vezes maior do que o preço da consulta naquela ocasião! No reverso, seu telefone celular: 11-99646-6447. Infelizmente não poderei mais ouvir sua voz nesse telefone, pois, certamente lhe daria como irmão mais velho umas boas reprimendas, e, caso soubesse ou sequer desconfiasse desse infausto, tudo faria para demovê-lo de sua obsessão dissimulada em partir. Esteja certo, Gláucio, que jamais descontaria esse cheque, ainda que vivo estivesse. 

Desafortunadamente você se tornou uma sentida e impreenchível ausência. Guardarei de nossa amizade sua jovialidade, honestidade, cultura, sagacidade, espontaneidade, boa vontade, vivacidade, inteligência e, paradoxalmente, alegria de viver e de conviver com seus amigos! 

Helio Begliomini 

Membro da Associação Paulista de Medicina, 

Academia de Medicina de São Paulo, Academia Cristã de Letras,

Academia Brasileira de Médicos Escritores e 

Sociedade Brasileira de Médicos Escritores 

* Gláucio Gonçalves Tiago nasceu em 15 de junho de 1962, e faleceu em 4 de maio de 2014. Foi velado e sepultado no Cemitério Santana Chora Menino.