FEBRE TRAVESSA
Vicente Amato Neto
Eu, com frequência, percebia que certos assuntos da área médico-assistencial precisam receber aprimoramentos viáveis. Incitava colegas e até profissionais de diferentes setores a tentarem colaborar. Logicamente, sugestões, muitas vezes, eram apenas intenções não estimulantes. A propósito, em certa fase preocupei-me com doenças como a febre, em que o reconhecimento da causa ficava bastante difícil. Pessoalmente, sentia isso no decurso de atendimentos que realizava esse estado comumente amparou a qualificação da Febre de Origem Indeterminada (FOI).
Enveredei-me pela procura de caminhos colaborativos e notei que poucos textos na literatura científica revelavam interesse pela questão.
Como ilustrações, conto dois fatos, presentes no conjunto que organizei, contendo problemas defrontados. Faro policial e perspicácia ajudaram para a chegada dos desfechos. Entretanto, algo curioso. Na plenitude da FOI, as resoluções contêm variadíssimas particularidades para procurar o almejado diagnóstico.
Tentei a implantação de núcleo específico em hospital universitário ou não, sem sucesso. Certas matérias eram afirmativamente mais interessantes. Por isso, avanços, instruções objetivas com sugestões edificantes, paralelamente ao acúmulo de experiências pessoais, não surgem, deixando estacionados conhecimentos pertinentes à FOI, que, de fato, é proeminente. Não é mera curiosidade no campo do trabalho profissional.
Chegou ao consultório uma moça com uns vinte e cinco anos de idade para ser atendida por mim. Estava acompanhada pelo pai, pastor evangélico, e pela mãe. Informou que há quatro meses fica com febre diariamente, estando também presentes abatimento e desânimo. Houve procedimento da forma costumeira e adotada a conduta que parece adequada para esclarecer situações nas quais hipertermia é saliente. O exame clínico, a cuidadosa observação médica, provas laboratoriais oportunas e uso de diagnóstico por imagem ocorreram em diversas ocasiões. Consultas repetidas sobrevieram. Porém, a resolução desejada faltou.
Não desanimei e, no grupo de possibilidades cogitadas, delineei uma decisiva. Solicitei à secretária que habilidosamente pedisse à jovem que voltasse sozinha, sem a presença do pai e da mãe. Ela atendeu e, em conversa franca e cordial, narrou que aconteceu decisão para ser efetuado casamento com pessoa indesejada e, mais do que isso, faltando ligação afetiva, além de conhecimento pessoal. Tal impropriedade, psicogenicamente, produziu o distúrbio febril. Contornada a maléfica obrigação ausentou-se a hipertermia.
Em um hospital muito bem conceituado, com freiras fundadoras e dirigentes, uma delas passou a ter febre, de 38ºC. Isso vinha durando há cerca de três meses, sem causa identificada. Pediram-me, então, para prestar assistência a ela. Os cuidados profissionais, prestimosos, mostraram algumas anormalidades: um orifício na orofaringe, infecção purulenta na incisão cirúrgica motivada por apendicectomia e anemia. Era preciso continuar o trabalho elucidativo e, nessa etapa, sucedeu verificação decisiva. Irmã de caridade, responsável pelo Banco de Sangue, encontrou em geladeira frasco com sangue isoladamente, sem que tivesse existido doador. Surpresa e especulação: interpretações estabeleceram a hipótese de que a religiosa em foco idealizara o engodo e isso ficou provado. Conversa franca esclareceu a triste ocorrência. O furo na garganta persistia por mutilações provocadas, a febre dependia da ferida em mau estado presente na parede abdominal mantida por fezes colocadas propositadamente pela jovem, e a anemia originavase de sangrias clandestinas repetidas. Entendimento leal encerrou o triste acontecimento. A posição de escrupulosamente devota não contava com vocação e gerava errônea compensação. Acertos concretizados e fim da insatisfação. Base psicogênica, complementada por impropriedades.
Aproveitando a oportunidade, friso que ainda concebo a FOI como objeto essencial que exige condução específica na assistência médica.
Vicente Amato Neto
Professor universitário, com especialização em clínica de doenças infecciosas e parasitárias