Duelo de mestres, por Acad. Jenner Cruz
Conheci o Prof. Dr. Arary da Cruz Tiriba, eminente membro do Conselho Científico da Academia de Medicina de São Paulo e do Conselho do Departamento Cultural da Associação Paulista de Medicina, excelente clínico, que se aposentou como Professor Titular de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, há muitos anos, quando ambos éramos médicos clínicos gerais da fábrica de automóveis Vemag.
Tenho gratas recordações dessa época, quando aprendi com seus donos, Diretor Presidente Domingos Alonso Fernandes e Diretores Cláudio Pereira Fernandes, seu filho, e Mauro Pereira Bueno, seu genro, inesquecíveis aulas de humanidade, dignidade e respeito ao homem, que ajudaram a moldar para melhor o meu caráter.
O Dr. Arary vem se mostrando um grande mestre na arte de escrever lindas e interessantes crônicas, sendo com prazer que lemos no Asclépio, o Boletim da Academia de Medicina de São Paulo, “Duelo de Mestres”, no qual ele relatava um confronto entre os saudosos professores Alípio Corrêa Netto, da Universidade de São Paulo, e Jairo de Almeida Ramos, da Escola Paulista de Medicina, na Propedêutica Médica, enfermaria do Hospital São Paulo, à beira do leito de um moribundo, caquético e terminal.
O duelo foi vencido pelo Prof. Alípio.
Esse fato me fez lembrar os duelos que tínhamos à noite, no início de minha carreira médica, nos anfiteatros da Associação Paulista de Medicina.
Naqueles tempos, existiam várias reuniões noturnas nessa ilustre casa, quando trazíamos nossos estudos e debatíamos nossas ideias em anfiteatros quase lotados. Provavelmente não apenas o trânsito e os congressos mas também menores estímulos ajudaram a sepultar essas atividades.
Em agosto de 1954, o Prof. Emílio Mattar apresentou dois trabalhos sobre o tratamento da hipertensão arterial
realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: um com três pacientes portadores de hipertensão maligna, tratados com brometo de hexametônio endovenoso, e outro com 16 pacientes portadores de hipertensão benigna grave, tratados com a associação de hidrazinoftalazina, Rauwolfia serpentina e dieta de arroz. Minha futura esposa e eu, residentes de Clínica Médica, tínhamos sido os médicos responsáveis pelo acompanhamento desses pacientes.
Em 1939, Robinson e Bruce haviam determinado que pressão arterial sistólica normal era aquela situada entre 90 e 120 mmHg, e pressão arterial diastólica normal era aquela entre 60 e 80 mmHg. Porém, muitos médicos ilustres não aceitaram essas medidas. Para complicar, em 1952, Master, Garfield e Walters demonstraram que a pressão arterial aumentava com a idade, sendo mais elevada no sexo masculino, porém, a partir da menopausa, haveria uma inversão, tornando-se mais alta entre as mulheres. Em 1992, três alunas da Universidade de Mogi das Cruzes, sob minha orientação, completaram esses ensinamentos. Na infância, a pressão arterial é igual em crianças de ambos os sexos e igual peso; contudo, como as meninas se desenvolvem antes, a sua pressão arterial se eleva após a menarca, mas, pouco tempo depois, com o início da puberdade masculina, o fenômeno se inverte, e a pressão eleva-se no sexo masculino.
Vários clínicos passaram a acreditar que, no idoso, a hipertensão era não só normal mas também necessária para vencer a resistência vascular decorrente de arteriosclerose. Após a apresentação, o Prof. Jairo de Almeida Ramos, demonstrando ser partidário desses conceitos, defendeu o argumento de que a hipertensão arterial, dentro de certos limites, não deveria ser tratada, principalmente no idoso, quando esta seria uma defesa normal do organismo. O Prof. Emílio e nós, seus pupilos, nos opusemos de maneira veemente a essas ideias. Infelizmente, não me recordo da posição assumida pela plateia, mas sei que nessa ocasião não houve vencido nem vencedor; cada um saiu convencido de sua razão.
Durante a minha vida clínica, nos Ambulatórios do Hospital das Clínicas e do Curso de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes, eu me acostumei a observar os hipertensos continuadamente, sem dar alta, pois a hipertensão arterial costuma ser uma doença sem cura. Graças a essa atitude, os meus pacientes, lentamente, ensinaram-me que Robinson e Bruce tinham razão. Desde a época em que ainda não existiam os medicamentos hipotensores atuais, os indivíduos que atingiam 100 anos de idade eram portadores de hipotensão essencial, ou seja, tinham pressão arterial baixa assintomática até idades avançadas e demoravam muito para apresentar hipertensão sistólica. Com os novos hipotensores, mais eficazes e menos sintomáticos, os pacientes que conseguem manter a pressão arterial sempre menor que 120/80 mmHg se comportam como um hipotenso essencial: demoram mui- to para apresentar hipertensão sistólica e tendem a atingir grande sobrevida.
Convencido desse fato, passei a ensinar aos meus alunos que pressão arterial normal era aquela inferior a 120/80 mmHg, em qualquer idade, o que seria internacionalmente reconhecido apenas em 2003, com a publicação de The Seventh Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure, contra uma grita geral, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.