O comovente presente atrasado
Vicente Amato Neto
A leishmaniose visceral ou calazar é doença parasitária causada por protozoário denominado leishmânia, que atinge homens e animais através da picada de um tipo de inseto. Trata-se do flebótomo, popularmente conhecido como birigui ou mosquito-palha. Essa moléstia existe em muitos países e, infelizmente, também no Brasil, onde até a metade do século passado não preocupava muito. Depois, começaram a ser diagnosticados acontecimentos em números crescentes e, agora, a situação corresponde a importante problema no âmbito da saúde pública. Antes presente em áreas tipo sopé de serra, passou a surgir em setores periurbanos e no litoral, em virtude de vários motivos. Passou a exigir mais corretas medidas preventivas e assistenciais.
Ao efetuar essas considerações, lembrei-me de paciente, com sete anos de idade, vítima desse mal, com desfecho emocionante. O evento ocorreu na enfermaria de moléstias infecciosas e parasitárias do Hospital das Clínicas de São Paulo. O garoto, internado, possibilitou suspeita fortíssima de que estava com calazar, existindo base em dados clínicos e epidemiológicos. Logo tiveram início os exames necessários para o esclarecimento da natureza da enfermidade.
No dia 23 de dezembro, passei por ele em tarefas habituais e prometi um presente natalino, logicamente motivado pela época. Pediu uma bola azul. Atendi, mas não agradei. Queria uma bem maior. Providenciei e entreguei rapidamente.
Veio o Natal e logo após fui ao hospital. No criado-mudo, via-se a bola azul e a cama estava vazia. O médico-assistente deu-me uma péssima notícia. No dia 24, instalou-se gravíssima pneumonia e na ocasião festiva o menino morreu. A complicação não teve caráter excepcional. Suponho que tipo arrasador de bactéria conduziu o rápido desenlace, gerando infecção hospitalar. Ficou sem a bola almejada.
Desejo que no campo da paz celestial tenha muitas. A leishmaniose penalizou a criança inocente e, desta vez, de forma fulminante.
A leishmaniose visceral, assim como várias outras enfermidades, é muito danosa e grave aqui no Brasil, em decorrência de condições favorecedoras, comumente criticáveis. Ceifou também o jovenzinho. Para mim, tornou-se simbolicamente uma grande bola azul.
Vicente Amato Neto
Professor de Medicina
*FONTE: Revista APM – Suplemento Cultural – outubro de 2017 – nº 295