José Pinus: O Professor, o Especialista, o Homem
JOSÉ PINUS: O PROFESSOR, O ESPECIALISTA, O HOMEM
Hoje, ao final da manhã, Lygia e eu estávamos tomando um chocolatinho no átrio do Einstein (HIAE) e eis que surge Jacques Pinus, andando apressado e, após os cumprimentos, foi direto ao ponto: “Meu pai acaba de falecer. Ele gostava muito de você” (eu já sabia; os sentimentos eram recíprocos). Tão rápido como chegou, Jacques se foi.
A partir daí, o chocolate se tornou um líquido amargo, de difícil deglutição. Ficamos ainda um bom tempo comentando sobre a figura do Prof. Pinus e o que ele representou para a Cirurgia Pediátrica brasileira e mundial.
Pinus, filho de imigrantes da Bessarábia (hoje, Moldávia), nasceu no Rio de Janeiro em 1927, mas cedo se mudou para São Paulo. Pertence a um grupo de verdadeiros pioneiros constituído por Virgílio Alves de Carvalho Pinto (SP), Roberto de Vilhena Moraes (SP), Plinio Campos Nogueira (SP), Manoel Reis Gonçalves Salvador (SP), Fábio Doria do Amaral (SP), Osvaldo Faria da Costa (SP), Octavio Freitas Vaz (RJ), José Mariano Duarte Lanna Sobrinho (MG), Jorge Bahia de Carvalho (BA), Frederico Pinto Carvalheira (PE), entre outros, que enfrentou não um urologista ou um cirurgião torácico que insistia em operar crianças, mas TODO o ambiente cirúrgico da época. Já pensaram como deve ter sido difícil contar para ícones do porte de Benedito Montenegro, Edmundo Vasconcelos e Alípio Correa Neto que estava chegando um grupo que se propunha a operar crianças com resultados melhores que os deles? Mudem-se os nomes e os locais geográficos e teremos o cenário do que acontecia no Brasil ao final dos anos 1940 e início da década seguinte.
Se hoje a especialidade é consolidada, devemos a eles; se não estamos completamente satisfeitos com ela, a responsabilidade é nossa.
Pinus foi um dos cirurgiões mais habilidosos que vi operar. Sua ambidestria, sua técnica apurada, maravilhavam quem fosse assistir suas cirurgias. Ao lado da “ema selvagem” (Plinio Campos Nogueira), Geraldo Modesto de Medeiros e Mario Roberto A. Coriolano (cirurgião de cabeça e pescoço do HC-FMUSP e da Faculdade de Medicina de Sto. Amaro, já falecido) compõe parte do meu panteão cirúrgico.
Entretanto, não aprendi técnicas cirúrgicas com Prof. Pinus, já que minha formação esteve ligada ao centro e ao outro extremo da Avenida Paulista; procurei, porém, sempre que possível assistir aulas dadas por ele para aprender a técnica de um bom didata. A propósito, no início de minha carreira universitária, a proposta era dar aulas da especialidade ao 4º ano da Faculdade de Medicina de Santo Amaro. Sem experiência, e temendo alguma reação dos alunos, convidei vários ícones para o primeiro curso. A estratégia ia funcionando bem, até que chegou o dia da aula do Prof. Pinus (obstrução do trato alimentar no RN). Fui busca-lo no consultório da São Carlos do Pinhal e iniciamos o longo trajeto até a Santa Casa de Santo Amaro (berço da Faculdade e primeiro Hospital da Instituição). Desde logo, entretanto, pressenti que as coisas iam mal: o Professor estava triste, amargurado e foi me contando os detalhes do amargor; achei que a aula seria um fracasso. Qual o que, após o início cambaleante, e à medida que o tempo passava, Pinus ia se transformando até apresentar entusiasticamente um famoso slide que mostrava um copinho com mecônio preso a um abaixador de língua e dizer: “no íleo meconial o que se tem é essa bostica aí”. Foi uma gargalhada geral e ao final ele foi aplaudido de pé pelos alunos. Essa aula por fim, fez bem para todo mundo.
Tive oportunidade de participar da, talvez, última cirurgia de urgência que ele realizou no HIAE, uma apendicectomia. Eu, auxiliando e Marcelo Iasi, instrumentando. Claro que a destreza de suas mãos já não era mais a mesma, mas a elegância dos movimentos esteve sempre presente. Pouco tempo depois desta cirurgia, ele se retirou da Retaguarda do Einstein.
Minha aproximação com o Prof. Pinus se deu nos últimos 10 -12 anos em função da CIPE, da WOFAPS e da Academia de Medicina de São Paulo. Houve época em que nossos consultórios no Einstein estavam próximos e o dele era estrategicamente situado no corredor de saída. Invariavelmente às 6ª feiras, na hora do almoço, quando terminava o atendimento, passava na sala do Professor e caso ele lá estivesse, partíamos para um período de conversa amigável sobre CIPE, WOFAPS, PANAMERICANA, etc. Lamentavelmente o Einstein deslocou todos os pediatras e cirurgiões pediatras (menos o Professor), para um prédio distante e aí esses interlúdios ficaram menos frequentes.
Pinus foi homenageado pela CIPESP (Sociedade Paulista de Cirurgia Pediátrica), pela CIPE (Sociedade Brasileira de Cirurgia Pediátrica) e pela WOFAPS (World Federation of Associations of Pediatric Surgeons); esta última entidade entregou-lhe seu mais alto galardão (Lifetime Achievement Award) em Cartagena de Las Índias, em 2012 e, naquela ocasião, uma das mais emocionantes passagens, que presenciei, foi o reencontro de Pinus e Boix Ochoa por ocasião do café da manhã no Hotel. Os dois constituíram uma sólida amizade de décadas de duração.
Quero ressaltar a importância que duas pessoas tiveram nesta fase final, difícil, da vida do Prof. Pinus: Rosangela, sua secretária, e Antônio, o motorista que foi um verdadeiro anjo da guarda acompanhando o deslocamento do Professor sempre que isso fosse possível, ora empurrando a cadeira de rodas ora ajudando-o, com técnica própria, a dar os pequenos passos que o Parkinson lhe permitia.
O Prof. Pinus foi admitido no nosso sodalício em 2012, já ao fim de sua brilhante carreira profissional, em uma época que a doença progressivamente lhe tolhia os movimentos. Sempre que possível, entretanto, comparecia aos nossos eventos, iluminando-os com seu otimismo.
A última vez que estive com o Professor foi no começo de outubro quando acompanhei Pepe Boix-Ochoa em visita à sua casa. Na ocasião, e alegre como sempre, Pinus relembrou episódio ocorrido no Peru no qual Pepe esteve presente. Ao sairmos, Boix emocionado pressentiu que aquela seria, talvez, a última vez que veria Pinus. Estava certo.
Descanse em paz grande pioneiro, a sua missão foi cumprida.
José Roberto S. Baratella
Presidente – AMSP
São Paulo, 04/11/2017