Assédios
Helio Begliomini
Há situações na vida que causam apreensão e angústia enquanto ocorrem, mas com o passar do tempo tornam-se até hilárias.
Embora vivamos há anos numa sociedade aberta, com direitos e oportunidades iguais para ambos os gêneros, ainda predomina o assédio do homem contra a mulher, independentemente do ambiente de trabalho.
A Medicina, pela própria seriedade da profissão, visto que lida com doenças, sofrimentos e incertezas, não constitui um ambiente propício para investidas e galanteios, sobretudo quando vindos do cliente para o profissional e, mais difícil ainda, quando o cliente é do sexo feminino e o profissional do masculino.
Com mais de 35 anos de militância na Medicina, lembro-me nitidamente de dois casos de assédio, reiteradamente recebidos, que me constrangeram e me embaraçaram, mas que hoje poderiam ser enquadrados como piadas.
As histórias são reais e ocorreram há anos. Contudo, os nomes dos personagens são fictícios, a fim de preservar não somente suas identidades, mas, sobretudo, o sigilo profissional.
O primeiro deles se refere à dona Maricota. Era uma senhora que conservava seu típico sotaque português, e que, à época, tinha uma idade parecida com a da minha avó paterna!!! – Norina. Ela tinha filhos e netos, mas cada qual possuía seus compromissos profissionais. Vinha sempre de táxi ao consultório do Imirim; às vezes só, e noutras com uma acompanhante, que sempre ficava na sala de espera.
Tínhamos uma relação cordial e amistosa, assim como com inúmeros outros pacientes que eu atendia. Com o passar do tempo, dona Maricota começou a aumentar a frequência de suas vindas ao consultório por motivos nem sempre compreensíveis. Referia que não havia ficado clara alguma determinação; que não sabia se continuava- tomando todos ou parte dos medicamentos; se deveria repetir ou antecipar algum exame; ou, ainda, queixava-se de alguns sintomas, geralmente vagos. Por mais que explicasse, parecia não se concentrar em minhas palavras; encarava-me com um doce sorriso e demorava em desgrudar de minha mão por ocasião de sua despedida ao sair do consultório. Embora eu desconfiasse de que algo estava estranho, procurava relevar tais atitudes e tributá-las a uma senhora idosa e solitária.
Chegou a me indagar algumas vezes se poderia atendê-la em sua casa. Dinheiro não era problema para ela! Visto minha dificuldade em fazê-lo devido ao meu exíguo tempo, assim como também pela desconfiança que dela sentia, começou a me convidar reiterada e insistentemente para um cafezinho em sua residência, convites esses que geralmente fazia ao término das consultas e sempre me encarando “encantada”, com um afável sorriso, ao mesmo tempo em que segurava delicadamente a minha mão.
A essa altura, tinha certeza dos galanteios, embora não conseguisse acreditar e entender, dada a grande diferença de idade que nos separava. Comecei a incluir nas desculpas os compromissos com minha esposa e filhos, tentando, com isso, tergiversar de suas investidas, sem, contudo, menosprezá-la.
Numa ou noutra visita a mais, começou a justificar seus convites dizendo que eu tinha uma vida estressante, e que ela, em sua residência, saberia como me deixar bem relaxado, subentendendo aí algumas de suas fantasias. Nessas ocasiões, embora mantivéssemos um clima respeitoso, como de costume, era evidente a malícia que ela exprimia em seus olhares e trejeitos.
Dona Maricota tentou seduzir-me algumas vezes, sem êxito, até que não mais apareceu no consultório. Não sei se sua ausência deveu-se à doença, desânimo por não ter alcançado seu intento, ou por falecimento.
O segundo e derradeiro caso tem como protagonista Angélica, nome que, posteriormente, depreendi que nada tinha a ver com os anjos. Ela era um pouco mais velha do que eu, dizia ser professora, era separada e tinha um filho. Eu a conheci no consultório do Imuvi – Instituto de Medicina Humanae Vitae, no Tremembé, quando me procurou por infecções urinárias de repetição. Estabelecemos uma relação cortês e ela retornava para avaliações periódicas e preventivas.
Certa feita, apareceu-me seu atual esposo para controle de próstata, o senhor Marcondes: português, que tinha de 15 a 20 anos a mais do que a Angélica. Também se tornou meu fiel cliente e vinha para seus controles periódicos. Passaram-se uns cinco anos e detectei nele um câncer de próstata. Indiquei-lhe cirurgia e ele concordou, sendo operado no Hospital 9 de Julho.
Curiosamente, nas visitas de pós-operatório que lhe fazia, acompanhavam-no no quarto, em dias alternados, quer Angélica, sua esposa, quer a senhora Dolores, com idade compatível com a do senhor Marcondes, que também dizia ser sua esposa. Numa das visitas que lhe fiz, ele se encontrava só, e não me contive em lhe indagar sobre suas duas esposas! Depreendi da conversa que ambas sabiam da existência uma da outra, mas que não podiam se encontrar. Dolores recebia de Marcondes respeito, algum afeto e o sustento do lar, ao passo que o relacionamento com Angélica lhe oferecia um sexo mais jovem em troca de segurança financeira. Era uma espécie de bigamia dissimulada e triplamente tolerada: por ele e por elas!
O tempo foi passando e, infelizmente, o tumor da próstata do senhor Marcondes, apesar de ter sido extirpado, voltou e saiu de controle. Paralelamente, a situação financeira dele também decaiu muito. Não sei exatamente o que motivou a separação de Angélica do Marcondes ou vice- -versa: falta de sexo, falta de dinheiro ou ambos?
Sabia que não estavam mais juntos e, perplexamente, comecei a observar que, paulatinamente, Angélica não somente se insinuava a cada consulta comigo, como também não lhe faltavam telefonemas que, a pretexto de esclarecimentos, subentendiam suas maliciosas intenções. Também me enviou diversas mensagens gravadas de amor. Chegou a dizer que saberia como ninguém me fazer feliz com suas carícias sensuais. E ela sabia claramente de minha condição de casado e de pai! O constrangimento foi tanto que cheguei a comunicar o fato a minha esposa, que acompanhou de perto, juntamente comigo, tão estupefata e apreensiva quanto eu, o desenrolar dos acontecimentos.
Intimamente, tinha certeza de que Angélica estava procurando outro porto seguro, tal qual fora o senhor Marcondes durante os muitos anos em que lhe fora útil e prestativo. Sua reiterada insistência, sem retorno de minha parte, arrefeceu-lhe os ânimos e, felizmente, nunca mais apareceu no consultório. Teria perdido o convênio que o senhor Marcondes lhe pagava?
Teria eu lhe tornado objeto de grande raiva? Ou será que teria seduzido outro ingênuo? Sinceramente não sei. O que sei é que passei maus e inesquecíveis momentos nesses dois assédios.
Helio Begliomini
Membro da Associação Paulista de Medicina,
da Academia de Medicina de São Paulo,
da Academia Cristã de Letras e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.