Que mundo é este?
Mario Santoro Júnior
Acredite, caro leitor. O que li numa revista semanal, com edição nacional, é de espantar quem, como eu, na casa dos setenta anos, já vai descendo a ladeira, como se falava outrora. Saibam todos o perigo que pode ser admirar uma linda jovem, toda graciosa, a qual, em cima de seus saltos altos, desfila envolta em seu vestido justo e que lhe revela as formas, como o céu revela a forma das montanhas.
Quero voltar para o meu passado. Lá não havia esse perigo. Ela desfilava, os homens respeitosamente paravam, com as mãos faziam um gesto de descobrir a cabeça, levantando o chapéu – sim, usavam-se chapéus. Às vezes se assobiava, era o famoso fiu-fiu. Ela se sentia lisonjeada, pois esse simples assobio era o reconhecimento de que as horas que havia passado nos preparativos para se embelezar haviam valido a pena. Sem se deter, como se nada tivesse visto, embora com os rabos dos olhos, como se diz, tudo viu, ela continuava a andar e se afastava. Nós a acompanhávamos com o olhar e, afastando-se, ela levava consigo nossos desejos, nem sempre tão inocentes, diga-se a bem da verdade. Ao cumprimentarmos uma pessoa com quem já tínhamos um grau de intimidade, podíamos beijar-lhe a face. Um, dois ou três beijinhos, o número dependia do local em que vivíamos. Dançávamos respeitando uma distância entre os corpos, distância esta imposta pela dama, na medida em que mantinha seus braços esticados. À proporção que a intimidade aumentava, os braços se flexionavam, até que por fim – oh, que delícia – já podíamos dançar de rosto coladinho. Não raras vezes, manchas na roupa denunciavam que não éramos tão pudicos assim. Moças casadouras se envergonhavam disto, e um bom esfregão com água e sabão procurava esconder os desejos não controlados da noite anterior, antes que as mães descobrissem, e uma forte reprimenda se tornasse iminente. No dia seguinte, tivesse havido ou não o tal rosto coladinho, podia haver um convite para saborear um sorvete geladinho. Claro que, outras vezes, um casamento apressado podia reparar, na presença do padre, o pecado cometido. Estavam salvas a honra e a moral da família. Quando assim não se procedia, apelava-se ao Delegado, que, com a autoridade que lhe era conferida pela lei, restaurava o que fosse necessário.
Pois bem, caro leitor. A tal revista diz que, agora, olhar para a moça que passa por nós como antes fazíamos, dar beijinhos na face e tudo mais de que falei é um tal de assédio sexual e, se tivermos esse comportamento, poderemos ter que nos entender com o Delegado e, se este assim entender, poderemos ouvir do senhor Juiz que teremos que passar uns tempos no xilindró, vendo “o sol nascer quadrado”, como se falava naqueles tempos. Nem piadas é mais permitido contar, seja de quem for, pois podem ser consideradas ofensas, e aí é assédio moral e, da mesma forma, poderemos ter que nos entender com o Juiz.
O mundo ficou muito chato. Paradoxalmente, aumentou de maneira assustadora o número de dependentes de drogas, de portadores de distúrbios mentais, bem como a insegurança que nos torna prisioneiros em nossas casas, tamanho é o perigo nas ruas.
Pensava sobre isto quando vi o Rex, um cachorro vigoroso, mostrando, com gestos rápidos e repetitivos, a uma fogosa cadelinha, toda sua virilidade. E isto tudo sem cerimônias.
Entendi que ele, sim, tem a liberdade que perdemos com nossa evolução. Agora não quero voltar para o meu passado, pois ele não volta mais. Mas lançar meu olhar para o futuro. Quando, então, chegar a minha vez de regressar a este mundo, vou dizer que não quero vir, pois ele ficou muito chato, mas sim ir para o mundo dos animais, onde posso andar com liberdade e amar quando e onde quiser. Aí sim vou poder dizer bem alto: que mundo bom é este!
Mario Santoro Júnior
Titular da Academia de Medicina de São Paulo (cadeira 65).
Titular da Academia Brasileira de Pediatria (cadeira 28).
Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.
Fonte: Suplemento Cultural da APM – março – 2018- nº 299