A descriminalização do aborto
Luiz Gonzaga Bertelli
Consoante a lição do professor Costa Júnior, aborto é a interrupção da gravidez antes do tempo normal, produzindo a morte do produto da concepção. Distingue-se do parto prematuro porque neste, na opinião dos obstetras, a gravidez se interrompe depois do sexto mês, continuando vivo o produto da concepção. Todavia, tal conceito cronológico não se aplica aos casos apreciados na justiça, tanto na figura do aborto praticado com a finalidade de sacrificar o ser em formação quanto na espécie prevista no título das lesões corporais, como aborto vulnerandi animus. São sinônimas as expressões aborto, abortamento e feticídio (de Severi). Carrara o define como sendo “a dolosa morte do feto no útero, ou a sua violenta expulsão do ventre materno, e de que se siga a morte”. Leoncini afirma que aborto é: “a interrupção da gravidez antes do termo normal, com morte do produto da concepção em nexo de causa e efeito”. Lazaretti diz que é o assassinato do feto no útero ou sua expulsão e morte consequente.
Em matéria publicada no Jornal O Estado de S.Paulo, edição de 18 de dezembro de 2016, é salientado que a criminalização do aborto atinge fundamentalmente as mulheres pobres, uma vez que as mulheres com recursos fazem abortos em clínicas, sem nenhum problema com a polícia. As mulheres pobres ou têm de pedir uma autorização judicial ou fazem abortos inseguros.
A grande maioria dos órgãos de comunicação do País aplaudiu a decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 29 de dezembro de 2016, que declarou não ser crime o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação.
A matéria projeta novamente no noticiário o relevante e polêmico tema.
Essa decisão, evidentemente, não é obrigatória para outros magistrados nas suas futuras decisões, no que concerne ao tema. Contudo, servirá de referência e poderá ser utilizada para fundamentar outras decisões sobre o mesmo tema.
Prevaleceram, na mais alta Corte do País, o ponto de vista do ministro Luís Roberto Barroso e a ponderação de que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto conflitam com os direitos humanos da mulher previstos na Carta Magna brasileira. Ao deliberar que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime, o Supremo Tribunal Federal (STF) atestou a valorização da autonomia das mulheres e da igualdade de gênero.
O entendimento firmado pela maioria da Primeira Turma do STF não significa que o aborto tenha sido descriminalizado entre nós.
Tão logo tomou conhecimento da discutida decisão, a Câmara dos Deputados proclamou a criação de uma Comissão para discutir a questão do aborto na Lei Maior.
Há muitos países que não criminalizam o aborto no início da gestação.
No Uruguai, o aborto foi legalizado há três anos. Consoante alguns penalistas, a legalização levou à redução das práticas abortivas na França, na Itália, em Portugal e outras Nações Europeias, Asiáticas e Africanas. Contudo, um estudo da empresa de pesquisa Ipsos, realizado em 24 países, mostra que a grande maioria da população brasileira defende a vida desde o momento da concepção e é contrária à prática do aborto. Somente 13% dos brasileiros apoiam o aborto quando a mulher assim desejar. O número coloca o país nos primeiros lugares em defesa da vida, atrás apenas do Peru, onde somente 12% se disseram favoráveis à interrupção da gravidez.
O resultado de 2017 demonstrou uma queda de três pontos percentuais em relação ao ano passado (16%) e inverteu a tendência dos dois últimos anos, quando os índices brasileiros de apoio vinham aumentando.
Segundo os dados da pesquisa, Suécia (77%), Hungria (67%) e França (65%) são países que apresentaram maior índice de opiniões favoráveis à prática do aborto em qualquer situação.
Outros criminalistas asseveram que a legalização do aborto permite que as pacientes sejam orientadas corretamente sobre métodos contraceptivos. A ilegalidade, para eles, alimenta o mercado de soluções abortivas. Há, no entanto, posições de juristas que declaram, enfaticamente, que “criminalizar o aborto é criminalizar a pobreza”.
Os ministros do STF Rosa Weber e Edson Fachin acompanharam o voto do ministro Barroso na íntegra. Já os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux não se manifestaram sobre o tema e votaram apenas pela revogação das prisões preventivas do caso analisado.
Ao defender o prazo de três meses como limite para interrupção da gravidez, o ministro Luís Roberto Barroso fundamentou-se na prática adotada na França, Espanha e Alemanha. Afirmou no seu voto o ministro Barroso que: “Durante o período de três meses o córtex cerebral, que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade, ainda não foi formado, nem há potencialidade alguma de vida fora do útero materno”.
O ministro Edson Fachin, por sua vez, em decorrência, não cumpriu o compromisso que fizera no Senado, quando foi sabatinado sobre a questão.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no dia 1º de dezembro de 2016, expediu nota em defesa da vida, condenando qualquer tentativa de liberação e descriminalização da prática do aborto, discordando da forma com que o aborto foi tratado num julgamento de habeas corpus no STF.
Para a professora Carmem Hein de Campos: “A criminalização viola alguns direitos fundamentais das mulheres. O direito à autonomia sexual e reprodutiva, à dignidade e à liberdade. Também tem impacto na saúde reprodutiva. Se a mulher faz um abortamento inseguro, pode sofrer sequelas do ponto de vista reprodutivo. Pode nunca mais poder engravidar”.
Consoante a pesquisa do Ministério da Saúde, o Brasil contabiliza uma média de quatro mortes diárias de mulheres que necessitam de hospitalização, devido às complicações do aborto. De janeiro a dezembro de 2016, houve 1.664 relatos de mulheres que faleceram depois de dar entrada em hospitais, por sérias complicações decorrentes da interrupção da gravidez.
No período de janeiro a junho do ano passado, foram autorizados 768 abortos. Em 2015, o número alcançado foi 738.
As correntes contrárias não escondem a sua preocupação de que, com a liberação, as estatísticas de aborto crescerão expressivamente.
O Papa Francisco, na carta apostólica Misericordia et Misera, divulgada em novembro de 2016, autorizou a absolvição de envolvidos com a prática do aborto que decidirem se confessar. Antes, a decisão dependia da aprovação de um bispo. “Para que nenhum obstáculo se interponha entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, de agora em diante concedo a todos os sacerdotes, em razão de seu ministério, a faculdade de absolver a quem tenha procurado o pecado do aborto”, salientou o Papa.
No tocante à questão, Dom Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, enfatizou: “O STF teria extrapolado de suas funções de garantidor da interpretação fiel da lei, sobretudo da Constituição, assumindo o papel de legislador, que compete ao Congresso Nacional”. Com efeito, a fundamentação apresentada pelo ministro relator e seguida por outros ministros é questionável e não levou em conta a natureza do ato abortivo, que suprime a vida de um ser humano inocente e indefeso. “É preciso que todas as comunidades se manifestem publicamente em prol da preservação da vida humana, a partir da sua concepção”, enfatizou.
No dia 11 de abril de 2017, o Cardeal Sérgio da Rocha, presidente da CNBB, expediu nova nota contra o aborto. Reiterou a sua posição em favor da inviolabilidade e dignidade da vida humana, desde a sua concepção até a morte natural. Condenou, assim, todas e quaisquer iniciativas que pretendam legalizar o aborto no Brasil.
Conclui o presidente da CNBB que: “O direito à vida é o mais fundamental dos direitos e, por isso, mais do que qualquer outro, deve ser protegido. Ele é um direito intrínseco à condição humana e não uma concessão do Estado. Os Poderes da República têm obrigação de garanti-lo e defendê-lo. O projeto de Lei 478/2007 – ‘Estatuto do Nascituro’, em tramitação no Congresso Nacional, que garante o direito à vida desde a concepção, deve ser urgentemente apreciado, aprovado e aplicado”.
Instado pelo STF a manifestar sobre a legalização do aborto até o terceiro mês de gestação, o governo Temer elaborou um documento para a Advocacia Geral da União (AGU) no qual defende que “a vida do nascituro deve prevalecer sobre os desejos das gestantes”. Para o Planalto, a legalização atual, que proíbe a prática com poucas exceções, é adequada. Ao abordar as “trágicas estatísticas” que envolvem as mulheres que abortam clandestinamente, o governo afirma: “Não são o Estado nem as leis que constrangem as mulheres às práticas abortivas clandestinas e arriscadas”.
Espera-se que a Suprema Corte não seja reticente, e, como guardiã da Constituição, preserve o direito à vida, pois, à falta de uma “Curadoria do Nascituro”, cabe ao Pretório Excelso sua defesa.
A União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp) está ingressando como amicus curiae no processo, mostrando que a ação fere princípios jurídicos consagrados. O primeiro deles é o do artigo 5º, caput, da Constituição, que diz ser o direito à vida inviolável. Ora, se a vida começa na concepção, há vida humana desde a concepção, pois no zigoto, primeira célula da união entre o espermatozoide e o óvulo, já estão definidas todas as características daquele ser humano, que o acompanharão até a morte. Não sem razão, o artigo 2º do Código Civil declara que todos os direitos do nascituro estão assegurados desde a concepção. Seria ridículo dizer que todos os direitos estão assegurados, menos o direito à vida!!!
Luiz Gonzaga Bertelli
Presidente Emérito do Centro de Integração Empresa-Escola – CIEE.
Diretor Tesoureiro da Ujucasp.