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O surgimento da Bioética, por Acad. Affonso Renato Meira

08.09.2011 | Tertúlias

O surgimento da Bioética é um assunto controverso, como controverso é, também,
o uso dos termos Ética e Moral. Essas palavras se diferenciam na sua origem, mas
possuem o mesmo significado. Ética do grego ethike e moral do latim mos, moris que se
traduzem para o português por costumes. Alguns estudiosos denominam de Moral a
ordenação ideal para as atividades do ser humano e a ordenação social efetivamente
estabelecida pelos usos e costumes, como Ética. Outros invertem essas denominações
denominando de Ética a ordenação ideal e de Moral a ordenação estabelecida pelos
usos e costumes. Finalmente outros não estabelecem diferenças entre o uso desses
termos, assim é que aqui é empregado e por uma razão de escolha é usado o termo Ética.
Alem dessas ordenações, é preciso lembrar a ética individual que revela a consciência da
pessoa.


A ética, como visão do mundo em uma época, se diferencia de tempos passados e
ou futuros, e a história demonstra esse fato. No entanto, a validade da ética no tempo
presente é de tal força que com freqüência é difícil entender suas mudanças. Este é o
dilema que emerge ao analisar os contornos éticos de uma situação, principalmente se
das mais polêmicas. Não é raro aparecer um conflito entre a ética pregada e a praticada.


A ética está sempre à procura da virtude e da verdade. Para conhecê-las os
caminhos a serem percorridos são os estabelecidos pela a aquisição do saber. Isso se faz
por métodos diversos, cada qual a procura da verdade e da virtude. A filosofia, o
empirismo, a analogia e a ciência, foram e são esses caminhos encontrados pelos
estudiosos. A ética, como valor social, se antepõe a procura de fazer que as
preocupações dos que se envolvem com o conhecimento do saber, sejam pautadas por
um valor relativo ao que a sociedade como um todo entende por virtude e por verdade.


Padre Buffo, da Universidade de Madri afirma que os envolvidos com a saúde foram
os primeiros a se preocuparem com os aspectos éticos em suas ocupações.

Ètica na Saúde Ètica na Saúde
O achado mais antigo encontrado que se refere a aspectos da ocupação de pessoas
cuidando da saúde é o diorito negro, achado em 1901, em Bagdá, no Iraque, da então
região da Mesopotâmia e que pode ser visto no Museu do Louvre em Paris, França. Tratase do Código de Hamurabi, Rei da Babilônia que viveu de a.C 1792 a a.C 1752. Em uma
sociedade constituída por homens livres, subalternos e escravos, previa penas variáveis
de acordo com a condição da vítima e do autor e estabelecia penas e pagamentos aos
que se ocupavam de cuidar da saúde.
Séculos mais tarde, datado de a.C.400 é o Juramento de Hipocrates, escrito nos
seguintes termos em tradução para o Português:
“Eu juro, por Apolo, médico, por Asclépio, Higia e Panacea e por todos os deuses e deusas, a
quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir, segundo meu poder e minha razão,
a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte;
fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus
próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem
remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o
resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os
regulamentos da profissão, porém, só a estes. Aplicarei os regimes para o bem do doente
segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém
darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo
modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha
vida e minha arte. Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa
operação aos práticos que disso cuidam. Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes,
mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo longe dos
prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados. Àquilo que no
exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou
ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto. Se eu cumprir este
juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão,
honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário
aconteça”.


Esse juramento é basicamente o que perdura, com pontos que significativamente
estão estabelecidos até o Código de Ética Médica atual como: o bem do paciente,…
não dar remédio mortal, … o cuidado com o pudor… sigilo profissional… etc.


A Ética e a Segunda Guerra A Ética e a Segunda Guerra Segunda Guerra


Terminada a segunda guerra mundial havia uma nova visão do mundo proveniente
da vitória dos países aliados contra os países constituintes do eixo. A opinião pública
mundial considerava a vitória da democracia contra a ditadura. Havia um incremento da
medicina com a descoberta dos antibióticos, com o uso das vacinas e com o
desenvolvimento da tecnologia permitindo cirurgias mais agressivas. Ao lado disso, a
preocupação com os aspectos sociais, em relação à saúde, se fazia sentir.


Em 1947 veio a luz o Código de Nuremberg que entre os seus princípios incluía a
necessidade do consentimento dos pacientes que se submeteriam a experimentações.
No ano seguinte na Assembléia Mundial das Nações Unidas foi assinada a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Nesse mesmo 1948 a Associação Médica Mundial
publicou a Declaração de Genebra onde refere à descriminação, porém, não trata do
aborto ou da distanásia. Em 1949 a Organização Mundial da Saúde editou um Código
Internacional de Ética Médica que, entretanto, não trouxe uma aceitação universal,
sendo seguido de acordo com a ética pessoal de cada médico. Essa mesma, Organização
Mundial da Saúde indicando uma tendência, em sua reunião de 1951, conceituou saúde
como “um estado de perfeito bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência
de afecção ou doença.”


Na sociedade americana a preocupação com a integração racial e os movimentos
a favor dos Direitos Humanos eram, na década de 1960, assuntos de interesse. Dorothy
Height presidente do Conselho Nacional das Mulheres Negras ajudava Martin Luther
King a orquestrar as estratégias das lutas pelos direitos civis dos negros
Em 1964 a Associação Médica Mundial elaborou princípios para regerem o
comportamento dos pesquisadores nas experiências relacionadas com a espécie humana
conhecida como a Declaração de Helsinque. Em 1966 surgiram Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais.


A Milbank Memorial Fund instituiu um programa de 5 anos destinados a docentes
de medicina com fundamentos em ciências sociais, 1962/1967, que se prolongou até 1972 A Public Health Services em julho de 1966 ofereceu grants para experimentação
com seres humanos. Em 1967 pela primeira vez foi realizado um transplante cardíaco
feito por Christian Barnard. A Ford Foundation e Populacion Council estabeleceram
grants para Daniel Callahan para investigar o controle da natalidade, em 1968. O
Dispositivo Intra Uterino começava a ser empregado em programas populacionais, e
havia um retorno da preocupação com o pensamento de Malthus. Em 1968 durante as
Olimpíadas foi significativa a presença de atletas americanos do movimento Black
Power.


A sociedade americana passava por uma transformação em relação ao problema
racial com a até então a predominância dos brancos, anglo-saxões e protestantes que
começava a perder forças. Nessa sociedade a medicina se caracterizada por ser
etnocêntrica com o médico liberal e autônomo, exercendo uma clínica defensiva, e
paternalista sem a preocupação do consentimento do paciente. Com essas
características o médico, tendo recebido um insignificante ensinamentos na área de
ética, se defendia da implantação de grupos de prestação de saúde e se preocupava com
sua formação como especialista, o que variava de Estado para Estado.
A medicina americana depois da segunda guerra se desenvolveu com intensidade
e por outro lado a sociedade americana, como um todo se preocupava com os direitos
humanos. Foi nesse momento da história da medicina americana que surgiu o artigo
Beecher H.K. “Ethics in clinical research” New England Journal of Medicine. v. 274, n°24,
1966.
Nesse artigo o autor tratava de experiências desenvolvidas exclusivamente com
pessoas em situação terapêutica submissa, como internos em hospitais de caridade,
deficientes mentais, recém-nascidos, idosos, pacientes psiquiátricos e presidiários, em
relação aos quais a freqüência de pesquisas contendo maus-tratos. Esse artigo foi
recusado pelo Journal of America Medical Association, JAMA, a mais prestigiosa
publicação das ciências médicas americana.,antes de ser submetido à publicação no New
England Journal of Medicine.


A revelação do artigo de Beecher provocou inúmeros comentários e reflexões, não
só entre os profissionais ligados à saúde como entre a sociedade em geral, que
acompanhava experimentações agressivas ao ser humano. Henry K.Beecher era um
prestigiado Professor de Pesquisas em Anestesiologia e chefe do Ad Hoc Committee of
the Harvard Medical School para examinar a idéia da “morte cerebral’.
O ensino da ética, insignificante nas escolas de medicina nos Estados Unidos da
América, se ministrava com uma carga maior nas que tinham uma orientação religiosa
católica e foi nessas escolas que o trabalho de Beecher teve uma repercussão intensa,
levando as demais escolas a sofrerem pressão, inclusive dos médicos e de seus alunos,
para passarem a discutir os ângulos éticos da medicina.
A Universidade de Hershey, nova, porém reconhecida pelo valor de seus docentes
e pelo currículo, organizou em 1967 pela primeira vez nos Estados Unidos um
Departamento de Humanidades, incluindo o ensino da Ética. Outras universidades
americanas e canadenses seguiram a mesma linha e introduziram ética entre suas
preocupações de estudo e ensino.
Essa preocupação de como à saúde, à vida e à morte mal compreendida pelos os
que da sociedade recebiam o aval para delas cuidarem, levou estudiosos americanos
como: Daniel Callahan, Willard Gayling, James Drane, Andre Hellegers, Van Rensselaer
Potter alem de outros a discutirem e a meditarem sobre os acontecimentos relativos à
saúde, a vida e a morte.
Na edição da revista Daedalus, revista publicada pela , American Academy of Art &
Sciences, no número da primavera de 1969, foi publicado um trabalho produto da
participação de 6 médicos, 5 advogados, 1 antropólogo, 1 sociólogo, 1 filósofo, e 1
psiquiatra sob o título “Ethical Aspects of Experimentations with Human Subjets”
cuidando dessa preocupação que envolvia a sociedade americana. Entre eles o médico
Henry K.Beecher; a antropóloga Margaret Mead; o sociólogo Talcotts Pearson; e o
filósofo Hans Jonas e outros de igual valor. Os direitos dos pacientes ficaram populares a
partir do final dos anos 1960, os cuidados médicos passaram a ser negócio de todos.

O triste estudo de Tuskegee, realizado com negros no Alabama, para estudar a
evolução da sífilis, começava a ser conhecido não só pelas pessoas ligadas aos aspectos
sanitários, como também por toda sociedade.


Bioética
A denominação de bioética para designar essa preocupação com a vida, com a
saúde e com a morte, surgiu em razão de que em 1971 em janeiro Van Rensselaer Potter,
oncologista norte-americano, publicou uma obra, abordando aspectos da saúde e os
relacionando com o meio ambiente, que recebeu o título “Bioethics: the bridge to the
future.” Em meados do mesmo ano Andre Hellegers, nascido na Holanda que emigrou
em 1952, aos 27 anos para os Estados Unidos da América, médico obstetra e
ginecologista fundou na Georgetown University o “Joseph and Rose Kennedy Institute
for Human Reproduction and Bioethics.” Essa coincidência levou a difusão desse termo
para nomear essas meditações. O termo bioética que já tinha sido usado em uma
publicação em 1927, por um pastor protestante, Fritz Lahr, havia caído em desuso.
O primeiro grupo de docentes envolvidos com essas reflexões no Kennedy
Institute of Bioethics no início dos anos setenta foi constituído por Walters Le Roy de
Teologia; Thomaz Beauchamps de Filosofia; James Childress de Estudos Religiosos;
Edmund Pellegrino de Medicina e Robert Veatch de Ética Médica.
Esses fatos evidenciam que a bioética não surgiu como dogma a ser respeitado ou
como doutrina a ser estabelecida, porém, muito mais como um paradigma. Já por sua
origem não tem valores absolutos, o que lhe da o caráter reflexivo. A percepção bioética
apresenta uma concepção abrangente, holística, que não caracteriza um ramo do saber,
mas a união de diferentes conhecimentos provenientes de diversas formações, razão de
sua transdisciplinariedade. Não é uma disciplina para especialistas, para formar peritos,
mas um saber transdisciplinar para estudiosos de várias procedências. Um saber
proveniente da filosofia, mas se encaminhando para as ciências sociais, principalmente
para a antropologia cultural. A bioética não traduz o pensamento filosófico, não traduz o
pensamento antropológico, não traduz o pensamento científico, a bioética traduz o
humanístico, proveniente de todas as formas do saber. A virtude e a verdade no
pensamento bioético são produtos do saber oriundos das diversas formas do
conhecimento o filosófico, o analógico, o empírico e o científico.

Outros nomes podem ser lembrados nos primórdios da bioética como Ian Kennedy e
Peter Singer mais envolvidos com a repercussão das idéias provenientes da bioética que
passaram a ser abraçadas na Europa a partir dos anos oitenta. Na América Latina alguns
nomes devem ser citados, no fim dos anos oitenta o jesuíta Alfonso Llano Escobar, da
Colômbia e José Alberto Mainetti, da Argentina foram os incentivadores para que os
conhecimentos da bioética chegassem ao Instituto Oscar Freire, em São Paulo, um dos
pontos da propagação da bioética no Brasil. No Instituto Oscar Freire se formalizou em
fevereiro de 1995 a fundação da Sociedade Brasileira de Bioética. Em São Paulo, em
outubro, desse mesmo ano, sob organização e presidência de Meira, se realizou o
Primeiro Congresso de Bioética da América Latina e do Caribe
Fernando Lolas Stepke se referindo no Quinto Congresso Mundial ocorrido em
2000 disse:
“Bioética não significa o mesmo para todos que usam a palavra. Há uma aceitação ampla,
que a assemelha a uma parte da” ética global” e inclui a reflexão moral sobre a vida, a
morte, o meio ambiente e a humanidade futura. Há uma aceitação mais restrita que a
reduz a tradicional ética da medicina e as conseqüências do progresso técnico nas
ciências da vida”
Meira em 2002 definiu:
“Bioética compreende o estudo, a análise, a reflexão e o pensamento que buscam a
conduta das pessoas em relação à saúde, à vida e à morte, de acordo com o ideal social,
baseada na razão dos conhecimentos científicos, nas emoções das pessoas e nos valores
da cultura.”
A preocupação com um pensamento que, balize a conduta das pessoas em relação
às situações concernentes à saúde, à vida e à morte, refletindo as emoções e os valores
culturais, assim como os conhecimentos científicos é o que deva ser a proposta da
bioética. O paradigma da bioética é universal, o seu discurso inicial se voltava à conduta
do profissional da saúde e ao meio ambiente como razões para o bem da humanidade.
Essa bioética universal, holística, transdisciplinar com o passar dos tempos
atendendo a tendência e a interesses diversos, passou a ganhar vertentes e escolas que
de acordo com seus postulantes deixaram de se constituir em uma unidade. Isso não
caracteriza o passado e traz dúvidas para o futuro. Estabelecendo parâmetros e
definições, ao lado de meditações e reflexões, os estudiosos envolvidos com o
pensamento bioético produzem abordagens que se concretizam em escritos que são
valiosos e podem ser difundidos entre todos na sociedade. Mas não podem ser produtos
unicamente de um pensamento racional, obtido através do aprendizado, se assim for
estarão desprovidos do que é o mais importante, o valor da consciência ética pessoal,
que caracteriza a colaboração de cada um para a reflexão bioética. A consciência pessoal
ética que é produto da formação religiosa, da emoção, dos valores da cultura e dos
conhecimentos adquiridos.
Este é o ponto que diferencia a bioética da ética profissional. A Ética Médica se
aprende a Bioética se sente.
A bioética surgiu das preocupações de pessoas da sociedade que verificaram que o
comportamento dos profissionais da saúde não era compatível com o desejo social. Com
o esquecimento do passado é possível que muitos dos novos iniciados em bioética nem
disso tenham conhecimento, pois cada vez mais a discussão bioética pertence às
associações, onde os que não pertencem são bloqueados de apresentar suas opiniões e
suas opiniões não são levadas a comunidade.
Nascendo da preocupação social a bioética deve voltar as suas origens e ser um
assunto de discussão de todos. Esta é a razão para que seja preciso entender o que levou
este paradigma a surgir.


*Conferência Inaugural da XIV Bienal da Academia Cearense de Medicina, Fortaleza, 30
de agosto de 2011.