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A decadência da psiquiatria III, por Acad. Guido Arturo Palomba

14.12.2011 | Tertúlias

A psiquiatria está infestada de carrapatos: os tais de protocolos (também chamados de inventários e instrumentos). São questionários que o paciente responde e o psiquiatra, baseado neles, estabelece o “bem fundamentado diagnóstico”. Os protocolos, para os novos médicos, são suas “importantes ferramentas” para diagnosticar e, o que é pior, orientar o tratamento.
Recentemente uma conceituada revista de psiquiatria de circulação nacional publicou mais um desses ordinários e imprestáveis protocolos, sob o seguinte título: Validação da versão em português do inventário de depressão maior. O “instrumento”, como não poderia deixar de ser, é originalmente americano, terra em que a psiquiatria anda de quatro, rendida à cultura dos psicofármacos, sem psicopatologia e dominada, por trás, pelos laboratórios produtores de remédio.
Esse instrumento, protocolo, inventário ou seja lá que nome tenha é igual aos testes que as revistas de banca de jornal trazem para adolescentes, a fim de medir se o namorado está ou não apaixonado: “Responda às perguntas, some os pontos, vire a revista de cabeça para baixo e confira o resultado ao pé da página”.
Assim é a psiquiatria de hoje, com seus inúmeros inventários, que tomam precioso espaço em revistas nacionais, a propagar a decadência da psiquiatria, ainda que o façam como se estivessem a divulgar o último grito científico da especialidade.
Para dar ao leitor ideia mais precisa da gravidade do problema, segue o tal instrumento que deu origem a este artigo. São perguntas que o paciente responde, o médico soma os pontos e conclui se é doente mental ou não.
“Você se sentiu de baixo astral ou triste?
Você perdeu interesse em suas atividades diárias?
Você sentiu falta de energia ou força?
Você se sentiu menos autoconfiante?
Você sentiu peso na consciência ou sentimento de culpa?
Você teve dificuldade de concentração? Por exemplo, ao ler jornal ou assistir TV?
Você se sente agitado?
Você se sentiu desanimado ou lento?
Você teve problemas para dormir à noite?
Você esteve com apetite diminuído?
Você esteve com apetite aumentado?”
O que mais preocupa não é a infantilidade dessas perguntinhas semelhantes às de revistas semanais para adolescentes, mas a conclusão a que chegaram os ilustres doutores que assinam o artigo, cujos nomes não serão aqui revelados por ética, apenas. Disseram: (O inventário) é de extrema importância e utilidade para aplicação clínica e científica buscar instrumentos que auxiliem a estabelecer um diagnóstico preciso e recomendar o melhor tratamento. A versão do MDI traduzida e validada para o português, de acordo com a análise final de suas propriedades psicométricas, demonstra ser um instrumento adequado que permite avaliar a presença de transtorno depressivo de acordo com o DSM-IV e também a gravidade dos sintomas depressivos (nota nossa: sobre o uso de siglas, outra epidemia, falaremos adiante).
Ora, depressão maior é uma doença mental grave que não pode ser diagnosticada com banalidade superficial, até mesmo por respeito aos seus compromissos históricos. Consta do Corpus Hipocraticum, quando era denominada melancolia. Dela falaram Galileu, Aurelianus, Michaelis de Hérida, Areteu da Capadócia e é no século XVII que aparece o The anatomy of melancholy (1621), de Robert Burton, em cuja obra, pela primeira vez, é descrita a predisposição de nascença do maniaci e do melan-
cholici estudados no Quaestionum medico-legalium do magno Paulo Zacchia (pensador-escritor, médico perito daquela época). Aí vieram Pinel (1802), Esquirol (1838), Jean Pierre Falret (1850), Baillarger (1854) e tantos outros grandes mestres, com suas maravilhosas descrições psicopatológicas, até resultar na clássica psicose maníaco-depressiva, descrita em pormenor, pela primeira vez, na 6ª edição do Tratado de psiquiatria, de Emil Kraepelin (1856-1926), que agora virou a tal de depressão maior que o simplório e acanhado inventário, em dez perguntas, pretende medir.
E ainda resta incontroverso a ignorância dos usuários deste imprestável “instrumento científico”, uma vez que, jejunos de psicopatologia, desconhecem que todos os doentes mentais, sem exceção, se de fato forem doentes mentais, apresentam anosognosia, que pode a eles “especialistas em psiquiatria baseada em inventários” soar como palavrão, mas que significa que o paciente desconhece a própria patologia (a, negação; noso, doença; gnonai, conhecimento, ou seja, desconhecimento da própria doença).
Dessarte, nenhum questionário desse tipo poderá ser útil se respondido por doente mental verdadeiro, uma vez que doentes mentais não se reconhecem doentes, ou seja, se alguém perguntar ao delirante se delira, óbvio que dirá que não, pois entre delírio e realidade, se de fato for doente mental, ficará com o primeiro. Se reconhecer que delira, não é delírio. Isso é primário em psiquiatria. Ademais, essa escumalha de “inventário” tem a desfaçatez de propor duas perguntas absolutamente contraditórias, quais sejam: “você esteve com o apetite diminuído?”, “você esteve com o apetite aumentado?”. Como se diz em linguagem chula: “faz barba e cabelo”, é o vale-tudo para dar diagnóstico de doença grave e justificar o uso dos psicofármacos.
Se fossem somente esses carrapatos dos inventários os únicos a espoliar a psiquiatria, talvez ainda tivesse salvação. Mas são apenas parte da desgraça. O primeiro mal que atacou a psiquiatria foi o batalhão das indústrias farmacêuticas, criando os malditos antidepressivos, ótimos para a minoria que não toma mas precisa, e péssimos para a grande maioria que toma e não precisa; depois veio o vírus assassino da psicopatologia, a Classificação Internacional das Doenças, a “bíblia” da psiquiatria contemporânea, em sua décima geração, virulentíssima. Agora, atacam-na os protocolos, os instrumentos, os inventários,
esses questionários infantis. Para os que acham que são somente esses os males da psiquiatria atual, enganam-se: ainda tem muito mais, entre outros, o uso de siglas, que empesteou tudo: abundantes, abusivas, mal empregadas, grosserias a impregnar artigos publicados em revistas psiquiátricas. Duvidam? Então veja-se, de caminho, algumas siglas extraídas do artigo citado:
DSM-IV, CID-10, HAM-D, DSM-III, MDI, V3, KMO, ROC, são algumas que lá se encontram. Ou seja: economia de espaço e economia de tempo. É a praga da escrita preguiçosa, à custa da clareza.