TAMEGA, amigo nada convencional, por Acad. Arary da Cruz Tiriba
Julho de 2000. Meu vizinho despertara e juntara os trapos. Espelhava-se no vidro de um automóvel, ajeitando o cabelo dourado e ajustando os trajos, camiseta regata, bermuda, botinas corroídas. Reedição fiel do legionário romano? Certamente não, porém — fácies mediterrânea peninsular, e postura — o esboço… Longinus! O centurião que acertou a lança no Cristo crucificado.
Sorria para mim. Cacos dentários. Deterioração só! Credo! Quanto terá sofrido com dor de dente! Anestesiado pela geladura das noites? Ou será que as dores se transmudam em bálsamo suave?… Só para alguns poucos, um ou outro bem-aventurado.
Dirigi-me a ele.
— V. está bonito.
Regozijo, aprovação imediata. Ao cumprimentá-lo, retribuía a gentileza [saudara-me por igual forma ao me ver bem-vestido, blusão de couro vistoso: “como V. está bonito!”. O elogio espontâneo para o octogenário, feio, fios brancos — escassos, obstinados, sobreviventes na calva —, confesso, fez-me bem.].
Tão pronto quanto o sorriso, estendeu-me a mão para o aperto que não hesitei em anuir. Fria, mais que fria! Glacial! Contraste! A minha, aquecida, nem de longe pensamento de contaminação pelo contato. Tão grande sua fortuna, fazia-me esquecer da minha alma sucumbida.
Tantos que o estimavam! Encontradiço, dia após dia. Sua idade? Vinte e cinco ou 45 — indiferente — o que transparecia.
Daquelas pessoas… estátuas! Semblante imutável, à margem do calendário!
Passos vagarosos, calado, respeitoso, olhar baixo, saco às costas… Jamais pediu ou perturbou. Moleques não o molestavam.
Dignidade, inata! Até o cão farejava o resquício de nobreza.
Vez única encontrei-o exaltado, sim, em plena oratória, discursando, alta voz! Para ninguém!!! Mimético! De legionário romano travestido – tal Cícero – em fervoroso tribuno! Não me detive para interpretação de sua prosopopeia. Como me arrependo!
No morador de rua, a inundação da felicidade! Dentro dele! Sem precisar de outrem! E para ser ofertada, compartilhada com mais alguém, com outros, com muitos, com todos!
Inverno de julho, 2011. O rabecão chegou para o embarque do amigo universal. Desta vez, rígido e frio, corpo inteiro… sepulcral! Palma de minha mão erguida sobre a carcaça. Pausei com respeito.
Seu coração, certamente, estaria aquecido; também, seu espírito.
Vago o estrado de cimento. Do Tamega… E seca… aquela fonte natural, transparente, de fraternidade