O anjo da noite, por Acad. Arary da Cruz Tiriba
Segunda metade dos anos 40, século passado. Éramos sete, os primeiros Acadêmicos Internos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; quatro procediam da Escola Paulista de Medicina e três da Faculdade de Medicina da USP. Em meio ao curso médico, assegurávamos dormida e comida no grande hospital da Vila Buarque, coração de São Paulo.
Em contrapartida, proporcionaríamos assistência noturna e, cada um, responderia por um plantão semanal, das 12 às 7 horas do dia seguinte.
À hora da véspera, o encerramento das atividades. As freiras rezavam o terço nas enfermeiras; a partir daí, a tranquilidade seria rompida pelas emergências nas Unidades dos quatro pavimentos — os dos homens e os das mulheres —, do majestoso hospital, e nos pavilhões do complexo assistencial. Então, nossa entrada em cena.
Aos primeiros tempos, as emergências pareciam-nos dramáticas, transmitindo-nos a sensação da incapacidade própria. Páginas sobre páginas animadas, da clínica, sob olhares de espanto por faltar-nos a experiência. Tropeçaríamos diante dos quatro agudos: dos cianóticos, dispneicos, estertorosos, doridos, sobretudo se não surgissem melhoras pela prescrição de um analgésico, de um antiespamódico ou de um simples bate-papo com o paciente.
Mas, invariável, a presença que nos antecedia, a da Freira que vagava noite após noite por todo o Hospital. Insone.
Atividade exclusivamente noturna. A criatura jamais via a luz do sol. Ela quem soprava a dica, baixinho:
— Câncer da laringe, Doutor… Edema agudo do pulmão, Doutor… Crise de cólica renal, Doutor…
— Sim, Irmã, edema agudo do pulmão… Sim, Irmã, cólica renal…
Identificada por Irmã Margarida1, a dama da caridade. Mais de 40, menos de 50 anos; rosto delicado, sem rugas; pele fina tal porcelana chinesa, branca tal o hábito de algodão; olhar melancólico; face amímica… Santificante, a feição. Sorriso ausente. Imperturbável. Humildade, sua constante. E retomava sua jornada até a troca da amaurose da madrugada pela acuidade do amanhecer. Certa noite, na sala de serviço de enfermagem, sós, nós dois.
— Doutor, o senhor tiraria minha pressão?
Com naturalidade, sem hesitação, arregaçou a manga do seu hábito e da camiseta íntima até o ombro. Brusca, surpreendente, nudez “semínima”! Contraste! À frieza da madrugada, à morbidade do ambiente, a Religiosa se despojando… braço desnudo, o descobrimento de um novo continente! Pele lisa ao contato e alva como a neve; na temperatura, morna, suave, acolhedora…
— O que a senhora sente, Irmã?
— Não estou bem de todo, sinto uns calores…
A queixa não foi além. Limitada aos fogachos, aos “calores”. Olhar sereno, resignado
A religiosa pertenceu à congregação de São José de Chambéry, fundada em Puy, na França, em 1858, e chegou a Itu, SP. Em 1872, Dr. Antônio da Silva Prado, Barão de Iguape, Provedor da Santa Casa de Misericórdia, solicitou a vinda das cinco primeiras irmãs da França. Tiveram o encargo de enfermagem, escrituração, receituário e nutrição. Na cidade de Santos, onde nasceu o A., o Colégio São José, da mesma Congregação, promoveu excelente educação à juventude feminina.
O doutorzinho mediu sua pressão. Margarida agradeceu.
Margarida gostava de nós, aos nossos vinte e poucos anos, é o que sentíamos. Desejava-nos, sim, o anelo de crescimento profissional para o novato. Transportara-se à noviça que fora antes de seus votos religiosos… Provável, amor de mãe para filho. E, mais, transferência! De seu patrimônio, o conhecimento semiológico. Quem sabe, teria desejado estreitar-nos no abraço, ainda que fosse o da fraternidade cristã, mas… proibido e mal interpretado! Pelas regras de sua ordenação…
Transcorridos mais de 60 anos! Irmã Margarida, aquela que se ama com naturalidade — carinho, estima, recíprocas —, sem necessidade de atos ou palavras. Jamais a esqueceremos. Relacionamento bem guardado na caixinha de velhas lembranças. Inesquecível!
A propósito da narrativa que você acaba de ler, o velho autor que a subscreve, que há muito deixou os plantões da saúde, durante a noite sem sono, endereçou poucas linhas para o amigo de sempre. Por gostar de troçar com o tal amigo, empregou o tom pouco usual, hoje em dia, utilizando a segunda pessoal do plural.
São Paulo, 9 de agosto de 2011
Caríssimo JOTACÊ:
Se chegar a merecer-VOS para a eternidade promovei — urgência urgentíssima — o atendimento do apelo que VOS faço. Tocai a sineta
para que Margarida, VOSSA Servidora, venha depressinha até nós. Desejo dizer-lhe que os ensinamentos que ela me passou multipliquei-os, à minha volta, ao longo da vida. E quero vê-la sorrir pela vez primeira.
Mas, MESTRE, no PAI-NOSSO que me ensinastes não teríeis Vos esquecido de que é dever, de todos, o de agradecer àqueles que nos
proporcionaram um bem?!!!
Já sei, já sei… sempre deixastes a brecha para a iniciativa espontânea, o livre-arbítrio, é isso?
Insisto, MESTRE, com respeito à Margarida, desejo concretizar aquele carinhoso abraço que evitamos na grande Casa da Caridade, a
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Mas vede, MESTRE! Convocai-a só durante o noturno celestial!