A Medicina E A Mitologia Grega
Affonso Renato Meira
Os estudiosos da mitologia grega irão encontrar figuras, senão similares, cabíveis de serem comparáveis com usos, costumes, procedimentos e até mesmo denominações referentes à moderna medicina.
A mitologia grega oferece alguns mitos ligados especialmente às curas e tratamentos dos males humanos. O conhecimento dessas figuras mitológicas oferece melhor possibilidade de que sejam compreendidas passagens ocasionadas por decisões médicas. Os mitos ajudam a compreender as relações humanas embasadas em fábulas que permitem, às vezes, um entendimento melhor de fatos transcritos como acontecidos.
A mitologia grega oriunda de tempos anteriores ao desenvolvimento dos processos modernos de comunicação tem suas origens perdidas na névoa das dificuldades oferecidas pela escrita. Com o passar dos tempos, as figuras da mitologia grega foram expressas através de narrativas, da poesia e da representação das artes, como a pintura e a escultura.
As evidências arqueológicas reveladas em séculos anteriores à presença de Cristo permitiram a descoberta de artefatos que retrataram cenas de ciclos da Grécia Antiga em que deuses adorados se transformaram em mitos. Mitos esses que eram considerados deuses, em um sentimento religioso, e que foram reconhecidos até os dias atuais.
Os doze grandes deuses do Olimpo, assim considerados na mitologia grega, são os seguintes:
Zeus — deus de todos os deuses, senhor do Céu.
Afrodite — deusa do amor, sexo e beleza. Poseidon — deus dos mares.
Hades — deus das almas dos mortos, dos cemitérios e do subterrâneo.
Hera — deusa dos casamentos e da maternidade.
Apolo — deus da luz e das obras de arte.
Ártemis — deusa da caça e da vida selvagem.
Ares — divindade da guerra.
Atena — deusa da sabedoria e da serenidade. Protetora da cidade de Atenas.
Cronos — deus da agricultura, que também simbolizava o tempo.
Hermes — mensageiro dos deuses, representa o comércio e as comunicações.
Hefesto — divindade do fogo e do trabalho.
Não havia entre essas divindades alguma que cuidasse da vida, da saúde ou de sua promoção, preservação e recuperação. Os deuses eram sempre ligados às artes e à literatura. Esse envolvimento com os cuidados com a saúde surge em mitos ou lendas de expressão menos valiosa, o que permite concluir que, em tempos antigos da Grécia, valores dos prazeres da vida — a arte, o belo, a música e a paixão —, sem considerar a vitalidade das pessoas, eram aspectos colocados em um patamar mais elevado.
Viver, não importava quanto nem como, aproveitar a vida, poderia ser objetivo valioso da cultura da sociedade da antiga Grécia. Ao menos é o que se pode depreender pela veneração dos mitos, que se transformaram em lendas, chegadas ao Ocidente em tempos mais próximos, trazidos principalmente por poetas.
Uma referência à medicina se encontra na lenda de Apolo e Dafne. Essa filha de Peneu foi o primeiro amor de Apolo. Tentando conquistá-la, enquanto ela fugia, Apolo se proclamava o deus da canção e da lira e afirmava que possuía flechas que atingiam direto os seus alvos. Contudo, reclamou ser atingido no coração por uma flecha letal. Conclamando-se deus da medicina e conhecedor das virtudes de todas as plantas curativas, lastimava-se de sofrer de uma enfermidade que bálsamo algum curaria: o amor. “Sou o deus da medicina, e conheço as virtudes de todas as plantas curativas. Ai de mim! Sofro de uma enfermidade que bálsamo algum pode curar!” Esse episódio é lembrado por poetas, que enfocam mais o amor de Apolo do que a face de deus da medicina. Em outra lenda da mitologia grega é encontrada uma referência envolvendo Apolo. Conta ela que esse deus se dedicava a um jovem chamado Jacinto, fazendo-lhe companhia em todas as suas atividades físicas.
Em uma oportunidade, quando um arremesso de um disco atingiu o jovem na testa, este, ferido, tombou em terra. Apolo, tão pálido quanto o jovem, levantou-o e, segurando-o nos braços, tratou de oferecer todas as suas habilidades para estancar o sangue. A gravidade do ferimento estava além da capacitação da medicina conhecida por Apolo, e o jovem veio a falecer. Diz a lenda que foi Zéfiro (o vento oeste), com ciúmes de Apolo, que soprou sobre o disco, fazendo-o atingir Jacinto. A literatura cuida da transformação de Jacinto em flor, ignorando os cuidados prestados por Apolo.
A história da guerra de Troia conta um episódio em que os gregos, sitiados, lutavam bravamente para se manter em locais conquistados. Ajax realizou prodígios até se encontrar com um troiano, Heitor, a quem desafiou para uma luta. Heitor aceitou e de imediato atirou uma lança, alvejando o imenso guerreiro. Como a lança atingiu o corpo de Ajax no cinturão, local onde estava presa a espada, o grego não sofreu perfuração no corpo. Não se sentindo ferido, Ajax, agarrando uma pedra grande, lançou-a sobre Heitor, atingindo-o no pescoço e o deixando estirado no chão da batalha. Júpiter, avistando Heitor desfalecido, mandou chamar Íris e Apolo. Íris de pronto mandou ordens para Netuno, que havia chegado para auxiliar os gregos a se retirar do campo de batalha, enquanto Apolo, que na batalha se mantinha neutro, seguiu para oferecer seus cuidados médicos a Heitor. Tudo ocorreu muito rapidamente, o que permitiu que Heitor, totalmente curado, retornasse à batalha e que Netuno voltasse a seus pagos.
O imaginário traduzido pela mitologia grega premia mais a literatura, as artes, o amor e o belo, as paixões, trazendo em um nível menos referendado a beleza física, a vitalidade e a saúde. O episódio entre Apolo e Dafne conta uma lenda de amor, revelando só no final a citação do deus da medicina, e mesmo assim para evidenciar seu sofrimento amoroso. O de Apolo e Jacinto se preocupa com a beleza da flor em que se transformou Jacinto, e não com a impossibilidade de Apolo salvá-lo da morte. Mesmo relatado em um episódio da guerra de Troia, a ação curativa de Apolo sobre os ferimentos de Heitor fica em segundo plano, sem menção qualquer de realce.
Referências:
Academia de Medicina de São Paulo. Afinal, quem é Asclépio?. Asclépio: Boletim da Academia de Medicina de São Paulo, n. 1, ano 1, São Paulo, jan./fev. 2010.
Brandão, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986. v. 1.
Bulfinch, Thomas (1796-1867). O livro da mitologia, a idade da fábula. Trad. Luciano Alves Meira. Ilustração Getulio Delphim. São Paulo: Martin Claret, 2013.
Guimarães R. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1996.
Meira, A. R. Código de Ética Médica: comparações e reflexões. São Paulo, 2010.
______. Sessenta anos passados: estórias de um médico não especialista. São Paulo: Scortecci, 2016.
Affonso Renato Meira
Professor Emérito da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo e Ex-presidente da Academia
de Medicina de São Paulo