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A tuberculose e a abreugrafia

20.05.2016 | Acadêmicos, Gerais

Jenner Cruz

Recentemente, o Conselho Federal da Medicina orientou, aos médicos brasileiros, a respeito da necessidade de sempre solicitar sorologia para hepatites B e C, sífilis e HIV a todos os pacientes, objetivando diagnosticar essas infecções em tempo oportuno. Esqueceram a ­tuberculose. 

A tuberculose, doença transmitida pelo Mycobacterium tuberculosis ou bacilo de Koch, é a doença infectocontagiosa que continua ocasionando mais mortes no Brasil e no mundo. 

Quando comecei meu curso médico, a tuberculose era tão comum e tão polimorfa que era sempre mencionada e pesquisada em qualquer doença mal compreendida, mesmo quando todos os sinais e sintomas parecessem contrários. 

Naquele tempo, a evolução da tuberculose era dividida em quatro grupos: primária, secundária, terciária e quaternária. 

A forma primária, ou primeira infecção, ocorria num paciente virgem do mal. Ela era localizada principalmente nos pulmões ou no intestino, ora através de gotículas eliminadas pela respiração, espirros ou tosse, de pessoas infectadas por leite não pasteurizado de animais doentes. Soubemos de um caso onde essa infecção foi no dedo de um açougueiro cortando carne contaminada. Como em toda primoinfecção, provocou uma ferida, que não sarava, e linfáticos, que, neste caso, iam da ferida ao cotovelo, provocando o aparecimento de gânglios satélites. 

No pulmão ocorre o mesmo, uma pneumonia segmentar, linfáticos satélites e acometimento de gânglios no mediastino. Se o paciente é portador de grande defesa imunológica, geralmente herdada, a primoinfecção pode evoluir para cura, mas, em geral, antes dessa cura alguns bacilos podem ter atingido, através do sangue circulante, qualquer órgão do paciente. Nessa cura, o bacilo não é destruído, sendo encapsulado e calcificado. Quando há uma queda da defesa do indivíduo, como ocorre na adolescência, no crescimento e em noites maldormidas, o bacilo é libertado, voltado a infectar. Se isso acontecer no local da primeira infecção, produz uma tuberculose denominada secundária, se ocorrer num foco distante, acarretaria uma tuberculose terciária. Quando esse órgão distante é o sistema nervoso central, denomina­se tuberculose ­quaternária. 

No Brasil surgiu um grande médico, Manuel Dias de Abreu, graduado em 1913, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que criou, em 1936, um método rápido e barato de tirar pequenas chapas radiográficas dos pulmões, o órgão mais afetado, para diagnosticar a doença no início, quando desconhecida. Esse método foi apresentado no I Congresso Nacional de Tuberculose, no Rio de Janeiro, em 1939, onde foi batizado de abreugrafia e ganhou o mundo. Em 1950, Manuel de Abreu foi indicado ao prêmio Nobel de Medicina e, em 1958, o prefeito de São Paulo, Adhemar Pereira de Barros, instituiu o dia da Abreugrafia, em 4 de janeiro, dia do nascimento de Manuel de Abreu. 

A partir dessa época a medicina começou a desenvolver remédios cada vez mais potentes e eficazes e a doença passou a ser controlada. 

Um de meus primeiros empregos foi ser médico da fábrica de automóveis Vemag. Os candidatos à fabrica precisavam trazer, entre outros documentos, uma abreugrafia. O diagnóstico vinha em um código, que tínhamos, mas a chapa radiográfica era muito útil, pois mostrava também o coração, os grandes vasos e outras estruturas. 

Quando me tornei médico da Superintendência de Águas e Esgoto da Capital e, após, Médico­Chefe, cargos obtidos por concurso público, como fora o da Vemag, fomos agraciados com a compra de um aparelho de raios X, a contratação de uma técnica e a possibilidade de realização de abreugrafia, o que muito nos ajudou na ­prevenção de moléstias cardiopulmonares de nossos ­funcionários. 

Eu tive uma tia que faleceu de tuberculose quando tinha 5 anos de idade. Como minha mãe, sua grande amiga e companheira, não ficou doente, deve ter influído para que em mim a tuberculose fosse apenas terciária, nos olhos. Tive uma série de uveítes dos 5 aos 41 anos de idade. Perdi a visão do olho direito com 20 anos e grande parte do campo visual do olho esquerdo até a cura completa. Contei esse fato porque sarei com um remédio novo, nessa época, a cicloserina. Esse medicamento não é mais vendido no Brasil há anos, apesar de continuar a ser vendido nos Estados Unidos, como remédio terciário, indicado nos casos onde tratamentos anteriores fracassaram. Esse medicamento pode ocasionar muitos efeitos colaterais, principalmente no sistema nervoso central. O único efeito colateral que tive foi a cura completa e definitiva das uveítes tuberculosas, porém outros pacientes tiveram problemas mais sérios. A cicloserina destrói a Mycobacterium tuberculosis e outras bactérias in vitro e in vivo. 

Há mais de vinte anos comecei a ter extrassístoles frequentes. Um cardiologista do INCOR, especializado em arritmias, após cerca de um ano, na terceira tentativa, descobriu que, com o uso de propafenona, minha arritmia desaparecia. Nessa época, o Serviço Médico dos funcionários do Hospital das Clínicas resolveu fazer, de rotina, raios X de tórax dos médicos. Descobriram que eu tinha um bócio mergulhante, multinodular tóxico, responsável pelas extrassístoles, que cederam com tireoidectomia parcial sem ocasionar hipotireoidismo. 

Contei esses fatos porque não se faz mais a abreugrafia como triagem. Alguns sábios resolveram proibir a abreugrafia no Brasil e em outros países por causa dos perigos de se expor pessoas saudáveis à radiação sem necessidade. Como sem necessidade? Eu já fiz muito tratamento de canais dentários, em cada vez tirei várias radiografias para que o dentista tivesse certeza do que estava fazendo. Radiação sem necessidade? 

Finalmente a incidência de tuberculose está aumentando de novo no mundo e no Brasil. AIDS? Descaso do serviço público. Abandono da abreugrafia? 

Se eu fosse alguma autoridade sanitária no Brasil voltaria a decretar a obrigatoriedade da abreugrafia anual a todos brasileiros. 

Jenner Cruz 

Membro Emérito da Academia de Medicina de São Paulo