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Crônica: Álbum de Fotografias 

18.02.2018 | Acadêmicos, Gerais

Na calmaria da tarde de um domingo do mês de setembro, com tempo livre, abri uma gaveta repleta de fotografias antigas. Qual o sentido de rever velhas fotografias? Ali, naquela gaveta, estavam mais de duas centenas de fotos de todas as épocas da minha vida. Fotos do menino que fui, do jovem, do adulto e do avô que sou hoje. Rever fotos antigas é uma aventura arriscada, algumas são recordações alegres, outras tristes. O álbum de fotografias da nossa vida é a crônica da navegação do homem pelos mares do tempo. As sequências de fotos, ano a ano, permitem juntar as duas pontas da vida. Desse modo, acompanhando as fotos dos anos já vividos é possível relembrar o cenário da travessia, com marcas adequadas das entradas e saídas de cena. Os ciclos da vida, as estações da vida, surgem à vista em cada imagem e relembram as tempestades e as bonanças vividas. Cada época “tem suas próprias circunstâncias e sua própria razão”, compreender isso não afasta o homem de todas as ambiências, mas enriquece a história em toda sua autenticidade. O tempo flui. Fluímos no tempo. Como diz o verso de Alexander Pope: “os anos seguem os anos, roubam algo cada dia, por fim roubam-nos de nós próprios”. 

Uma das primeiras fotos que encontrei estávamos, jovens, eu e a minha bela amiga Clarice, em uma festa de réveillon do ano de 1961. Colegas de ginásio, compartilhamos juntos um tempo da nossa juventude. Ela era a melhor amiga da Ana Paula, minha namorada. Quando precisamos dela, nunca faltou. Muito inteligente, sempre era fácil concordar com ela. Com a filosofia de Berkeley, costumava dizer: “a vida é fantasia”. E todos os nossos “problemas” de adolescentes acabavam, inclusive a falta de dinheiro para o cinema. Para a nossa geração ir ao cinema era vital, ver os filmes, comentá-los e discuti-los. No verso da foto, à guisa de dedicatória, ela escreveu: “Ao meu futuro médico preferido, um feliz 1962”. Uma alusão ao vestibular que eu prestaria nesse ano. 

As imagens oferecem um ponto de referência para a memória. E quando essa memória é do tempo da nossa juventude, antes da maturidade, elas estão impregnadas do anseio adolescente que vivemos por uma compreensão da amizade e do amor. Movido por um impulso nostálgico resolvi telefonar para a Clarice. Tive dificuldades, precisei falar com várias pessoas até conseguir seu novo telefone. Queria saber se ela ia me identificar, depois de algumas décadas. Surpresa, pensou que eu estava ligando porque ela estava doente. Ficou admirada quando contei a história da nossa foto. Conversamos durante trinta minutos. Quando descreveu sua vida tive a impressão que a sua filosofia existencial seguiu a corajosa intuição de Pascal: “quando se ganha, se ganha tudo, e, quando se perde, não se perde nada”. Há algo de misterioso e fascinante na maneira simples como ela fala da sua vida. Para ela o que é realmente importante está sujeito à rotina da existência. Conversar com a Clarice é uma rara oportunidade de um intercâmbio de confiança. Trabalhou em uma empresa multinacional, casou-se com um diplomata que conheceu em uma viagem ao Rio. Ficou viúva aos 53 anos, com dois filhos. Hoje tem 3 netos. Quando perguntou de mim, falei dos projetos realizados e da ampla galeria de projetos sempre transferidos para o futuro; do meu casamento, dos meus filhos e dos meus netos. Expliquei que me sinto um homem feliz, sem mágoas. Finalmente, ela perguntou: “tem notícias da Ana Paula? Nunca compreendi a separação de vocês”. Respondi com sinceridade: eu também não compreendi, pagamos um preço muito alto por essa decisão. Não estávamos suficientes fortes para enfrentar pequenas dificuldades. E, mudando de assunto, comentei que o nosso tempo tinha sido um período fantástico. Ela sorriu, como se lembrasse daquele tempo e disse: “Isso é verdade. O curso da existência é repleto de esperas, planos e preocupações inúteis. A vida não é assim?” Percebi alguma emoção na sua voz. Desejei uma recuperação rápida para sua saúde, escolhi com cuidado as palavras para transmitir otimismo, fiquei de ligar em breve e prometi uma visita. Voltei para a gaveta de fotografias, poderia ficar contemplando durante horas aquelas fotos. Uma foto da Ana Paula, na beleza dos seus dezessete anos, trazia como dedicatória, apenas, Sabor a Mi, o nome de um belo bolero que fala de um amor eterno.

Existe algo forte e profundo no ato de visitar o álbum de fotografias da vida vivida, uma combinação de sentimentalismo e anseio que parece atingir principalmente aos que já passaram da meia idade. A vida não é preenchida todo o tempo por espetáculos de primeira classe. O psicólogo Abraham Maslov descreveu a existência dos “momentos culminantes” da vida, que o homem não esquece. Além de evocarem saudades, fotos antigas podem deixar explícitos os encontros e os desencontros da vida e mostram a força do tempo, as modificações ocorridas durante a nossa travessia. Aquele, de camisa branca, sou eu? Como cresceram rápido os filhos e os netos! O álbum de fotografias mostra que o homem não pode fugir da compreensão da transitoriedade do tempo e precisa viver com intensidade o tempo presente. 

José Hugo de Lins Pessoa 
Titular da cadeira nº61