Histórico: A Menina e o bonequinho
Já septuagenário, caminhando a passos céleres para se tornar octogenário, vez por outra ia para aquelas bandas, onde crescera como menino de fazenda. Corria pelos campos, caçava passarinho, nadava no rio limpíssimo, que até ali ninguém ouvira falar na tal de poluição. Já moço e por ser de família se não abastada, pelo menos com recursos suficientes para nada faltar, mudou-se para cidade grande onde além de cursar medicina, sonho que acalentava desde menino, também com o tempo veio a conhecer não só a poluição, mas tantas outras coisas que só de lembrar já ficava triste e melancólico… Mas, jamais pôde esquecer-se do seu tempo de menino e adolescente. Tanto que enquanto galgava títulos acadêmicos e reconhecimento, não só entre seus pares, mas também em sua grande clientela, vez por outra voltava àquelas bandas e ali ora se alegrava ao lembrar-se dos tempos de outrora e ora se entristecia, sempre que tomava ciência que um dos seus velhos amigos, atendendo ao pedido do Pai, partira para Sua casa. Sempre concluía que esse era o velho dualismo da vida: É necessário a tristeza para se saber o que é alegria. Sentado na varanda, na velha cadeira de balanço, onde tantas vezes seu pai o embalara e ele ajeitado no seu colo, foi despertado desse devaneio pela sua netinha, que, com cerca de oito anos trazia nas mãos uma revista médica, que havia levado para leitura e, apontando para uma imagem, dizia: Vovô por que ele está todo enrolado nesses panos? Imediatamente lhe veio à mente a história que agora lhe conto, meu caro leitor. Ei-la: As guildas eram associações de profissionais, surgidas na Baixa Idade Média (séculos XII ao XV), com forte espírito mutualista. Uma das mais ricas delas, em Florença, era a da Seda.
As guildas tinham, geralmente, uma vocação filantrópica. Por conta disto a guilda da Seda encomendou, em 1419, ao arquiteto Filippo Brunelleschi, aquele que viria a ser um dos primeiros orfanatos na Europa. Sua missão era acolher crianças abandonadas na rua ou cujas mães morressem em função do parto. Assim nasceu o Ospedale degli Innocenti (Spedale em dialeto toscano antigo). Localizado na Piazza della Santíssima Annunziata, da qual sai a Via dei Servi, que vai dar de encontro à Catedral de Santa Maria del Fiore, o “Duomo” de Firenze. Projeto de Brunelleschi, arquiteto com importantes trabalhos, como o existente na cúpula do Duomo de Firenze, veio a se tornar uma belíssima obra, considerada uma joia da arquitetura da Alta Renascença. Contudo, Brunelleschi não terminou sua obra, que foi completada por Francesco della Luna, em 1445.
No alto das colunas existentes na fachada do Ospedale degli Innocenti o projeto de Brunelleschi era deixar os círculos vazados. Contudo, por volta de 1490, foi encomendado a Andrea della Robbia”vários medalhões de terracota esmaltada.
Esses medalhões hoje compõem um rico acervo do Museu da Renascença, abrigado no antigo Ospedale.
Antes de analisarmos o simbolismo dos medalhões é necessário saber que, na antiguidade, conforme a cultura judaica, era costume se enfaixar as crianças até os três meses de idade quando, então, eram levadas ao templo e apresentadas ao sacerdote, conforme pode-se ver na representação da tela do pintor veneziano Giovanni Bellini.
Os medalhões esculpidos por Andrea Della Robbia mostram diversas crianças que representam o Menino Jesus com seu olhar suplicante pelas crianças abandonadas.
Na sequência dos medalhões a primeira criança está totalmente enfaixada, as quais nos medalhões seguintes vão sendo desenfaixadas, sendo que no último medalhão a criança aparece com as faixas afastadas do corpo como se tivesse se livrado delas. Isto, simbolicamente, é interpretado como a libertação que era proporcionada às crianças no Ospedale pelo acolhimento que proporcionavam.
Durante muitos anos um dos medalhões foi símbolo da Sociedade Brasileira de Pediatria, tendo sofrido ao longo do tempo algumas modificações, sendo a mais recente sido realizado por Francisco” Confort, designer da Casa da Moeda do Brasil. Outro medalhão foi adotado pela Academia Americana de Pediatria. A Academia Brasileira de Pediatria o mantém até hoje como seu símbolo.
Ao final destes pensamentos e procurando palavras para explicar essa história numa linguagem apropriada a uma criança naquela idade, a menina se antecipou e disse: Ah, já sei, ela se machucou e você enrolou esses panos, igualzinho como você fez quando eu fiz dodói no braço. Não foi?
Mário Santoro Júnior, titular da cadeira no 69.