Moradores De Rua E Reminiscências
Jenner Cruz
Até o curso ginasial morei em Mogi das Cruzes, subúrbio de São Paulo. Nessa época não existiam moradores de rua em Mogi. Os pobres moravam numa vila de casas pequenas, mantidas pela Liga Humanitária de Mogi das Cruzes, entidade filantrópica muito bem dirigida por um alfaiate local. Durante o dia eles pediam esmolas e refeições. Na casa de minha avó sempre tinha um ou dois para o almoço.
Em 1966, fui pela primeira vez aos Estados Unidos, para conhecer esse país e comparecer ao III Congresso da Sociedade Internacional de Nefrologia, em Washington. Essa viagem incluía um giro pelas principais cidades americanas. Em Chicago fiquei no Hotel Sheraton, na avenida Michigan. Um dia, fiz um passeio de 4 horas para conhecer a cidade. Essa avenida é uma das mais importantes. Ela termina ou inicia em uma praça, onde há uma velha construção de pedra. Para quem não sabe ou não se lembra, Chicago foi quase totalmente destruída, em 1871, por um grande incêndio, de causa indeterminada. Ele começou na manhã do dia 8 e só terminou na noite do dia 9 de outubro. Dois terços de suas casas eram de madeira. Destruiu 18.000 casas, deixou 300 mortos e 95.000 desabrigados. Nessa época, Chicago era o maior entreposto mundial de madeira, um dos motivos para que muitas de suas casas fossem desse material. Chicago foi reconstruída com a participação de eminentes arquitetos, e daquele imenso fogaréu sobrou apenas aquela construção de pedra. A avenida Michigan é alta, e mais ou menos em seu meio passa, por baixo, uma rua, cujo acesso é feito por ruas em alça, o famoso loop de Chicago. Em nosso passeio passamos por essa rua, cheia de pobres e de pequenos hotéis. Segundo nosso guia e motorista, eram alcoólatras. Faziam pequenos bicos nos dias úteis e se embriagavam nos fins de semana. Comiam e dormiam naqueles hotelecos. Não dormiam na rua.
No Brasil, meu primeiro contato com os moradores de rua foi em Recife, em 1990, durante o XV Congresso Brasileiro de Nefrologia. Fui só, minha esposa ficou em São Paulo. Fiquei num hotel, que já fora importante, mas estava em decadência, às margens do rio Capiberibe. Um dia, após o jantar, resolvi andar pelas vizinhanças. Perto havia uma praça, na qual não consegui caminhar, tal o número de pessoas dormindo na rua. Perplexo, voltei triste para o hotel.-
Conheci quase toda a Europa Ocidental em várias viagens. Nunca vi pobres dormindo nas ruas. Em Nice, importante cidade francesa, marítima, na badalada côte d´azur, encontramos ciganas perto da praia, que queriam ler nossas sortes. Não quisemos. Uma grande avenida liga a estação ferroviária até a praia. Perto, na praia, à direita de quem vem da estação, há um hotel antigo à beira-mar, mas ainda bonito e importante: Hotel Negresco. Soubemos que foi construído no início do século XX por um mendigo que ficara rico pedindo esmolas. Provavelmente Joracy Schafflor Camargo criou sua famosa peça teatral “Deus lhe pague”, imortalizada por Procópio Ferreira, após saber desse acontecimento Ela também virou um filme argentino de grande sucesso: God bless you ou Dios se lo pague, rodado em 1948, protagonizado pelo grande ator mexicano Arturo de Córdova. Assisti a ambos, a peça e o filme. Infelizmente, soubemos também que o criador do hotel morreu pobre, porque ele fora confiscado pelo governo francês, sem nenhum ressarcimento, durante a Primeira Grande Guerra, para alojamento dos militares.
Estivemos três vezes em São Francisco, na Califórnia, cidade que muito nos encantou, a ponto de pensarmos em escolhê-la como nossa futura moradia, caso fôssemos residir na América do Norte algum dia. A última vez foi durante o World Congress of Nephrology, em outubro de 2001. Ficamos em um bom hotel, no bairro chinês. Para quem não conhece a cidade, ela possui um pequeno morro: morro dos Dois Irmãos. De lá se consegue ver toda cidade. Bem evidente há uma grande rua, Market Street, que divide a cidade em duas. Do lado esquerdo de quem olha, as ruas cruzam-se formando pequenos losangos e, do lado direito, formando quadrados. O Centro Cultural, onde foi realizado o Congresso, fica mais ou menos no meio dessa rua, cercado de grandes e modernos hotéis. O bairro chinês fica perto, no lado esquerdo, a partir da Market Street. O nosso hotel ficava a uns 600 metros do Centro Cultural. O Congresso foi ótimo. Toda noite havia uma palestra importante, acompanhada de um jantar, servido como os nossos rodízios, em cada um dos grandes hotéis. Minha esposa e eu nos inscrevemos em todos, de modo que íamos para nosso hotel após as 22h30. Logo no começo, uma de nossas hospedeiras conversou sobre a segurança da cidade. Ficamos sabendo que o bairro chinês, além de ser muito seguro, possuía um conhecido morador de rua. À noite, caminhando em direção ao nosso hotel, raramente encontrávamos alguém em suas ruas desertas, e vimos o morador de rua duas vezes, maltrapilho, barbudo, que não se importou com nossa presença. Nunca soubemos onde ele dormia.
Em Roma, na avenida que desce em direção às ruínas antigas, a partir do Coliseu, também encontramos ciganas mais agressivas, mas o mais chocante foi sabermos que, no começo deste ano, existiam moradores de rua dormindo na Praça de São Pedro, em frente à Basílica, no Vaticano. A notícia dizia que o Papa Francisco mandara dar banho, alimentação, serviço de barbearia e roupas para os pobres, sem retirá-los da praça. Não entendi o porquê de “sem retirá-los da praça”. Porque não conseguir reabilitá-los? O problema é geral e está crescendo em todo lugar.
O mesmo acontece em São Paulo. Temos a impressão de que o número de moradores aumenta a cada dia. Dizem que são quase 15.000, espalhados por toda cidade, às vezes com crianças e nem sempre viciados em drogas ou em álcool. Dizem que eles não querem sair da rua. Na Rua Xavier de Toledo, no Centro, há anos, existe um que dorme com sua cadeira de rodas acomodada ao lado. Em Mogi não existe mais a Liga Humanitária. Soubemos que existem moradores de rua no Largo do Carmo, ao lado da igreja, mas que eles não ficam dormindo durante o dia, saem de manhã. Realmente, passei por lá algumas vezes, horas mais tarde, e não vi nenhum.
O problema dos moradores de rua é universal, mas muito grande no Brasil. Precisamos criar condições de dar assistência global, um local bom e próprio para eles morarem, restaurar sua dignidade, sem esquecer que não se deve apenas “dar o peixe, e sim ensiná-los a pescar”.
O mundo está crescendo numa velocidade imensa. Como médicos, sabemos que em poucos anos, em exames rotineiros de sangue, conheceremos quais toxinas pré-inflamatórias estão nos atacando e como evitá-las, quais cânceres nos atingirão e como preveni-los. Os aparelhos eletrônicos estão cada vez mais sofisticados e logo teremos robôs pensantes. Não podemos esquecer que quaisquer medidas utilizadas para proteger os moradores de rua nunca devem impedir esse crescimento universal.