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UMA DAS NOTURNAS

13.06.2016 | Acadêmicos, Gerais

Mario Santoro Junior

http://vestibularmackenzie.com.br/blog/geografia/sao-paulo-antiga-terra-da-garoa/

Esta história, ou melhor seria, estória, alhures já foi contada. Contudo, o assunto por vezes se perde na poeira da estrada da vida e, assim, nunca é demais ser relembrada. Afinal, sempre se aprende algo. 

Já se passavam duas décadas após a metade do século passado. Era uma época diferente. São Paulo era uma cidade grande, mas muito menor que a São Paulo de hoje. Tudo era muito diferente. Até o clima, sendo muito frequentes dias e noites frias e com garoa. Por isso era chamada de São Paulo da garoa. Na rua se podia andar sem que vivêssemos neuroticamente preocupados com a violência que hoje nos assola. A medicina ainda não havia sido aviltada pelas condições que hoje nos fazem reféns de empregos mal remunerados. Podíamos viver de nossos consultórios, pois tínhamos larga clientela particular que, embora nos fizesse trabalhar intensamente, nos reconhecia e, assim, com dignidade, mantínhamos nossas famílias. No contraponto, atendíamos a qualquer hora do dia e da noite e era muito comum que, após um longo dia de trabalho, ao chegar em casa, atendêssemos inúmeros telefonemas e chamados que nos tiravam do ócio que esperávamos ter. 

Muitas foram as histórias pitorescas que todos acumulamos no exercício de nossa clínica. Algumas surgiram de nossos atendimentos noturnos, e, por isso, as chamo de Noturnas. Não raros, clientes se tornavam amigos para sempre. 

Em um desses casos — e continuo amigo desta família — atendi pela primeira vez um casal com um bebê recémnascido. O pai da criança era o caçula de uma família com vários irmãos. Estes, todos muito bem situados na vida, eram meus clientes de muitos anos. Realizado o primeiro atendimento, foram agendados os retornos para seguimento de puericultura. E, assim, retornaram nos meses subsequentes. Por volta do quarto mês de vida deste bebê, recebo um telefonema de sua mãe, tão logo eu havia chegado em casa — não tínhamos celulares nesta época. Do outro lado da linha, a mãe, preocupada, se queixou de que o bebê estava, como eu então entendi, com obstrução nasal. Portanto um caso bastante simples. Dei as orientações de praxe e me coloquei à disposição, caso necessitassem de algo mais. E, de fato, entenderam, pela madrugada, que havia necessidade de me chamar, pois o bebê estava, segundo eles, respirando com muita dificuldade. Apesar de sonolento, diante da queixa, não tive dúvida de que deveria avaliá-lo de imediato. Considerei que o melhor seria atendê-lo no pronto-socorro, pois poderia ser necessário um exame de imagem que, aliás, éramos nós mesmos que o fazíamos em um velho aparelho de raios X e o interpretávamos. Assim combinado, levantei-me e, após me vestir e tirar o carro da garagem, dirigi-me ao pronto-socorro onde atuava como plantonista, porém que mantinha um consultório para os médicos que quisessem e precisassem lá atender seus pacientes. Naquele dia, a madrugada estava particularmente muito fria, com muita garoa e o carro – um potente Maverick v8 (um carrão para os padrões da época) deslizava suave pelas ruas umedecidas pela garoa. Eu tomava cuidado para que os trilhos do bonde não estragassem os pneus do potente Maverick V8. No rádio — cujo som em nada se assemelhava ao dos aparelhos de hoje — ressoavam as vozes de Elis Regina, Dick Farney, Tom Jobim, Cauby Peixoto, Maysa, Gal Costa e Bethânia. Eram um bálsamo para minha mente e permitiam diminuir meu estresse pela ansiedade do que encontraria ao chegar ao pronto-socorro. Uma criança com intensa dispneia? Quase parada respiratória? Uma bronquiolite ou broncopneumonia grave? Nesses casos, então, o que a mãe quis me dizer, horas antes, havia sido minimizado com um diagnóstico simplório de obstrução nasal e, portanto, havíamos retardado um atendimento que poderia ter, no mínimo, diminuído o desconforto da criança ou até mesmo ter salvado sua vida? A culpa, inconscientemente já assumida, era, assim, expiada, ao menos em parte, pelo som tranquilizador daquele radinho. Elis ou Gal Costa jamais souberam que foram minhas companheiras naquela viagem!!! Chegando ao pronto-socorro, avisei a recepcionista, dirigi-me ao citado consultório e solicitei que chamassem a família. Entraram no consultório, cumprimentei-os e, estranhando, perguntei: “cadê o bebê?”. Neste momento, o pai me respondeu: “com este frio, o senhor não acha que íamos tirá-lo de casa, não é?” 

Sem palavras…

Claro que, por muitos anos, foi motivo de troça de seus irmãos. Hoje, já experimentado pelos desencontros da vida e muitas histórias ou estórias colecionadas, vez por outra eu o encontro, pois frequentamos o mesmo clube. Com um sorriso nos lábios, ele me diz, também frequentemente: “rompo já a amizade se for comentar aquela história noturna…”

Mario Santoro Junior 

Titular da Academia de Medicina de São Paulo e Titular da 

Academia Brasileira de Pediatria