A MEDICINA MODERNA – EMPRESAS E FREGUESES
Affonso Renato Meira
Quando alguém é reconhecido como médico vem sempre uma pergunta: “Qual a sua especialidade?”. Essa é a visão da medicina moderna. O médico é um profissional especialista que está munido de uma série de artefatos oferecidos pela tecnologia para reconhecer um específico mal-estar do cliente. O médico sai especialista da Escola Médica, não cuida mais do cliente, mas sim do mal que o aflige.
Nem sempre foi assim. Em outras épocas, o médico saía da Escola de Medicina para atender pacientes fossem crianças, mulheres ou homens. Era comum se encontrar anúncios, nos jornais ou em placas, anunciando a presença do médico da seguinte maneira:
Dr. Fulano de Tal
Homens, Mulheres e Crianças
Clínica e Cirurgia
Das 9h às 12h e das 14h às 18h
Emergência tel XXXXX
A dedicação ao paciente era total, não havia convênios, sequer Sistema Único de Saúde.
O que mais se assemelhava aos convênios eram os serviços médicos de alguns sindicatos ou de serviços sociais como o SESI e o SENAC ou, então, de alguns institutos como o IAPECT, IAMSPE etc. Alguns hospitais tinham enfermarias em que nada se cobrava e tudo se oferecia para pacientes sem condições de ressarcir as despesas com os seus problemas de saúde. Eram denominadas as enfermarias gratuitas.
Os serviços para os doentes dessas enfermarias eram prestados sem o médico receber recompensa alguma, senão a de ter ajudado uma pessoa doente e que precisava de atenção médica. O número de médicos era muito menor e o Código de Ética Médica tinha por pressuposto o que o médico deveria obedecer, incluindo a recomendação de não cobrar pelos serviços prestados a outro médico nem aos dependentes deste.
Código de Ética Médica elaborado em 1953 e em vigor até 19631
Capítulo VII
Honorários Profissionais
Art. 64 — O médico não deve pleitear honorários:
a) ……..
b) por serviços prestados a colega que exerça a profissão ou a pessoa da respectiva família ou sob sua dependência.
c) ……..
O médico era feliz e não sabia. Era respeitado e considerado como pessoa de alto valor social. Era querido, admirado e sua palavra sempre atendida. Era conhecido e procurado pela qualidade de sua consulta. O doente era examinado no seu todo. Na consulta, eram medidas a temperatura corporal, o peso e relação com altura, e a pressão arterial; era examinada a coloração das mucosas nos olhos e na boca (“por favor, ponha a língua fora da boca”); eram escutados o ruído dos pulmões (o célebre: “diga trinta e três”) e os batimentos do coração; e, por fim, era feita indagação sobre a queixa e a duração da razão pela qual se apresentava no consultório. Tudo anotado no prontuário que cada paciente tinha.
O médico, quase sempre, conhecia o cliente e o tratava pelo nome. O médico exercia uma profissão que se caracterizava por ser liberal e autônoma.
Quando o cliente não possuía condições de pagar a consulta, ficava a dever e pagava quando possível fosse. Algumas vezes, ressarcia o médico com objetos, bebidas ou animais, isso principalmente nas regiões do interior do país. Havia uma preocupação ética com o preço dos serviços médicos.
Código de Ética Médica elaborado em 1953 e em vigor até 1963¹
Capítulo VII
Honorários Profissionais
Artigo 63 — O médico se conduzirá com moderação na fixação de seus honorários, não devendo fazê-lo arbitrariamente, mas segundo a jurisprudência e a doutrina, atendendo aos seguintes elementos:
a) costumes do lugar;
b) condições em que o serviço foi prestado (hora, local, distância, urgência, meio de transporte etc.);
c) trabalho e tempo dispendidos;
d) qualidade do serviço prestado e complexidade do caso;
e) notoriedade do médico;
f) praxe anteriormente estabelecida, e não revogada, entre o médico e o paciente.
A Escola Médica não era constituída de Departamentos, não havia internatos e as residências eram precárias. O calendário escolar era preenchido por Cátedras. Não havia Departamento ou Disciplina de Saúde da Comunidade ou de Medicina Preventiva, mas na Cátedra de Higiene o aluno apreendia que para melhorar a saúde das populações algumas medidas deveriam ser tomadas entre elas:
a) Melhorar e corrigir o ambiente, em que se situa a casa, que construída de pau a pique coberta de sapé, sem água e vaso sanitário dentro da casa, serve como moradia mais propícia aos barbeiros, veiculadores da doença de Chagas (o que permanecerá assim se houver ou não médico na comunidade).
b) Prover o saneamento básico, ou seja, água potável para consumo dentro do domicílio e destino correto das águas servidas, no mínimo com construção de fossas sanitárias, águas que, contaminadas, podem também afetar a saúde do médico localizado na comunidade. (Por não ser prioritária, a implantação do saneamento foi suspensa por 120 dias.)
c) Estabelecer um programa de visitadores sanitários, ou o nome que se queira dar, a quem, com uma escolaridade fundamental e treino de menos de um ano, oriente as famílias, mediante visitas periódicas, para uma possível correta nutrição, exercícios físicos, imunização e outros hábitos saudáveis de acordo com as possibilidades da comunidade (programa de Medicina da Família tanto falado, mas não realizado).
d) Realizar um intenso e amplo programa de imunização, e não somente campanhas periódicas que dificilmente atingem, em uma semana ou em período pouco maior, todo o universo desejável, e levado a cabo sem necessidade da presença de médico (a campanha mais longa, atualmente, é a de vacinação de idosos e crianças contra gripe, alcançando 10 dias por ano).
e) Combater os insetos que transmitem doenças, impedindo a formação de logradouros (águas paradas, coleção de estrume ou de outros locais propícios à multiplicação de insetos), para o que o médico pouco poderá auxiliar (na atualidade, epidemia de dengue).
Essas recomendações não são lembradas na Escola Médica atual por duas razões: poucos docentes têm conhecimento da área de saúde pública; e poucos alunos por ela têm interesse. O cliente era feliz e também não sabia.
Os tempos passaram, os Códigos de Ética Médica foram se atualizando, as Escolas Médicas foram se multiplicando, e a necessidade de mais médicos surgiu como uma realidade inegável para oferecer saúde para as populações, sobretudo para as comunidades do interior menos desenvolvidas economicamente.
Convém, todavia, lembrar que o médico só exerce sua profissão quando tem condições para atender o cliente em local adequado para o consultório e com instrumental pertinente.2 O cliente vai à procura do médico quando apresenta uma queixa a respeito de sua condição, ou quando considera seu bem-estar comprometido. O médico e o cliente não se aproximam se este estiver com saúde, portanto aquele não cuida da saúde.
Por tudo isso, verifica-se que a medicina moderna − a medicina dos dias atuais − muito se modificou. O médico é outro, com uma preparação, em muitas Escolas, mais deficiente que a dos médicos de antigamente, voltada a uma só especialidade que o torna incapaz de examinar um paciente. Não se examina um doente como um todo, procura-se o que o doente apresenta dentro do conhecimento da especialidade do médico. O docente não se prepara para ensinar, não tem as melhores condições para transmitir seus conhecimentos, que se limitam, quase sempre, exclusivamente à especialidade. Na atualidade, temos mais Escolas de Medicina e, em geral, piores docentes, e uma única preocupação: a de que a saúde das comunidades se resolverá com mais médicos, daí a necessidade de formar mais médicos.
O médico da atualidade parece ter a obrigação de solicitar exames laboratoriais ou de imagem para os clientes antes de exarar sua opinião sobre o mal de seu paciente. Surge, nesse momento, o laboratório moderno. Os exames laboratoriais de todas as especialidades, fossem clínicos ou de imagem, eram realizados ou supervisados por médicos, que cuidavam de dar atenção ao cliente.
Com a medicina moderna, tudo evoluiu e melhorou, menos a posição do médico na sociedade. A medicina moderna não permite ao médico exercer uma profissão liberal e autônoma. O médico do dia de hoje é um conveniado com uma empresa de prestação de serviços médicos, com a qual ele discute sem poder impor o preço do seu serviço. O médico não é procurado pela sua qualidade, mas sim pela possibilidade de ser encontrado no posto público de atendimento ou credenciado por determinado convênio. Os exames laboratoriais são solicitados e devem ser autorizados para serem realizados.
Os laboratórios são grandes empreendimentos financeiros nacionais ou mesmo multinacionais, onde o médico não é encontrado, pois os laboratórios são geralmente dirigidos por biomédicos. Não são laboratórios, são empresas com suas cotas sendo valorizadas nas Bolsas de Valores.
Os clientes quase sempre procuram os médicos mais próximos ou mais convenientes, seja no convênio ou no posto de saúde. Devem estar cadastrados no Sistema Único de Saúde ou em dia no pagamento do convênio. Não são tratados como clientes, mas como fregueses.
Affonso Renato Meira
Professor Emérito da Faculdade de Medicina da USP
Membro Emérito da Academia de Medicina de São Paulo
* Código de Ética Médica da Associação Médica Brasileira (1953). Aprovado na IV Reunião do Conselho Deliberativo ocorrida no Rio de Janeiro, em 30 de janeiro de 1953, e reconhecido oficialmente pela Lei n. 3.268 de setembro de 1957.
* Meira, A.R. O Médico e a Andorinha. In: Suplemento Cultural da APM, maio de 2012, n. 235.