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MEDICINA NA UNIVERSIDADE – MAIS UM DESABAFO

03.06.2015 | Gerais

Arary da Cruz Tiriba

Na edição OESP 04/12/2014, o Prof. Charles Mady, da Faculdade de Medicina da USP, não escondeu o profundo desapontamento pelo instantâneo sombrio do tradicional Instituto de Ensino Superior, contrastante com a grandeza que até então desfrutara. 

Sobre a questão, permitimo-nos considerações paralelas. Vemos acompanhando a evolução do ensino médico a partir de meados do século XX. Recém-graduados na Escola Paulista de Medicina (EPM), em 1950, desde então — passados mais de 60 anos —, já atuávamos, como Assistente Extranumerário, na Disciplina de Doenças Infectuo­sas e Parasitárias, da referida Instituição. Estreita a ligação do Hospital de Isolamento “Emílio Ribas” — sede das aulas práticas — com o Instituto Adolpho Lutz, da Secretaria da Saúde de São Paulo, mais o Complexo Hospitalar do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina (FMUSP), e a Faculdade de Saúde Pública (FSPUSP), o que nos levou a integrar cursos de Pós-Graduação e de Especialização nas Unidades Universitárias, por essa forma identificando características didáticas e perfis pessoais de tantos professores catedráticos e de suas equipes de trabalho. 

Não bastante, em razão do exercício clínico em doenças transmissíveis, contato, também estreito, com renomados especialistas da medicina humana e da animal, biologia, engenharia sanitária, educação em saúde… integrados no Instituto Pasteur, Instituto Biológico, Instituto Clemente Ferreira, Superintendência do Controle de Endemias, Hospital do Mandaqui (então só para tuberculose), Hospital do Fogo Selvagem… 

Note-se, assinalada “equipe de trabalho”. Sim, porque o professor catedrático constituía a figura exponencial em torno da qual gravitavam seus assistentes, classificados como 1º, 2º e 3º assistente, ainda que a superassem em brilho didático. 

O título de Assistente da Cadeira, por si, o caminho do sucesso! Exemplo? Na EPM, o Prof. Paulino Watt Longo, catedrático, detentor de considerável clínica no Brasil por sua profunda experiência em neurologia e psiquiatria, não se distinguia como bom didata, porém, ainda que comunicador apenas razoável, agregou equipe extraordinária, coesa, atuan­te em perfeita sintonia, integrada por Paulo Pinto Pupo e Otavio Leme, que abrilhantavam a Cadeira, de onde a projeção professoral daquele patrono do ensino médico. 

Alípio Corrêa Neto, professor de cirurgia das duas Escolas Médicas da época, outro exemplo. De pouco brilho, mas notável em realização profissional, civil e militar, no Brasil e fora do País (foi chefe do Serviço de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra Mundial, reclamado, então, até pela farda norte-americana)

Disciplinas básicas entrelaçavam-se com disciplinas clínicas se o regente era um Carlos da Silva Lacaz (FMUSP), dotado de excepcional capacidade de aglutinar especialistas nacionais e estrangeiros. 

Depositário de alta respeitabilidade, figurante indispensável no elenco, o chefe da disciplina! Quase sempre, o mais antigo, mantenedor da tradição, hábil à tomada de decisões e de medidas corretivas, à delegação de atividades, livrando o catedrático das tarefas domésticas mais ingratas. Exemplo dessa dualidade, Adherbal Tolosa, catedrático do Departamento de Neurologia (FMUSP) e Oswaldo Lange, 1º assistente e chefe da disciplina. 

Verdade que, vez ou outra, catedráticos valeram-se da projeção para preparar o terreno à sua substituição pelos pósteros diretos. Na universidade como na política…

A partir das últimas décadas do século XX, a pós-graduação passou a fornir a universidade de mestres e de doutores “alta voz”. Surgida a meta — carreirismo — caracterizada por rapidez e oportunismo! Fornadas de “doutos”, a peso de estipêndios atrativos, devotaram-se primordialmente à maquiagem de não poucas faculdades particulares, mal-acabadas, em proliferação no território nacional, carentes de ensinadores. “O pé em duas canoas”… Universidade pública, base e fonte do abastecimento. 

A figura Magister dixit não resistiu, inaudível a palavra da cátedra. O professor catedrático cedeu lugar ao professor titular — único ou pluralizado em cada colegiado disciplinar —, assentado não no apelidado trono vitalício, mas na bancada de laboratório, à distância do corpo discente. Consequência? A bagagem clínica, a preciosa experiência acumulada, reconhecida no figurante magistral, cedeu lugar à produção compactada, isto é, à quantidade de trabalhos publicados, sem consideração pela efetiva autoria e/ou qualidade científica. 

Ademais, o contato do corpo docente com o alunado deixou de ser praticado por falta de crédito, de peso curricular, não mensurável pela CAPES. O aluno, quando muito, tem acesso aos jovens preceptores, às vezes, tratados, simplesmente, por tutores, alguns invisíveis, outros acessíveis, ao celular, se não estiverem de saco cheio… 

A chefia da disciplina passou a ser por eleição. Atendeu à voz que reivindicava tratar-se — chefia — acima de tudo, de encarrego, nunca de ancestralidade. Daí em diante, gradativamente, a votação passa a ser ou pelo mais insinuan­te ou pelo mais maneiroso ou pelo mais conveniente à acomodação do colegiado, jamais pelo disciplinador como foi um Oswaldo Lange. 

Uma pena! Mesmo em uma universidade pública materialmente bem constituída, de tradição reconhecida, aonde o diagnóstico chega célere pelo laboratório e pela imagenologia — desprezada a Discussão de Caso —, o ensino médico vem decaindo sem que os alunos percebam. Na universidade, como no país… 

Lamentavelmente, confundiu-se autoridade com autoritarismo. Iguais? nem tanto! Autoridade! Austeridade! Que permaneçam hasteadas! Mas tratava-se de tempos em que se existia autoridade, procedia de cima. À atualidade, no ensino da Medicina, nível… represa Cantareira 2014-15… 

Pode apostar, o Prof. Charles Mady [seu “desencanto” acessível no Google], que recentes acontecimentos depreciativos das nossas Universidades — droga, morte, estupro… —, derivam, em grande parte, da falta daqueles modelos mencionados. Respeito — deles emanado —, capitalizado, repartido entre todos! 

Ao que se assiste, hoje, é a competição da universidade com a alta administração nacional de vícios profundamente enraizados! Nosso Brasil, tão rico em recursos naturais! Tão pobre em moralidade! Não vale a pena sonhar… 

Arary da Cruz Tiriba 

Professor Titular, aposentado, em atuação voluntária 

na EPM, UNIFESP. Membro Emérito da Academia 

de Medicina de São Paulo, Cadeira Adolpho Lutz