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Minhas Observações Clínicas

23.09.2014 | Gerais

Jenner Cruz 

Escreverei uma crônica eminentemente médica. Pretendo relatar algumas das conclusões a que cheguei no exercício de minha profissão, já há mais de 60 anos. 

Vou começar com aquela que julgo mais útil e importante para todos. 

Ainda muito jovem, observei que, antes dos modernos medicamentos, as pessoas que atingiam mais de 90 anos de idade eram muito magras e portadoras de hipotensão essencial, isto é, tinham pressão arterial ao redor de 90/60 mmHg, assintomáticas. Hoje, com os novos remédios, vejo que é muito fácil transformar um hipertenso essencial, de pressão elevada sem causa determinada, em um hipotenso essencial, desde que iniciemos o tratamento precocemente, antes que ocorram muitas lesões vasculares. Qual a vantagem? Esses pacientes, com pressão baixa durante todo o dia, atingirão facilmente os 90 anos sem hipertensão sistólica e, muitas vezes, nem sempre magros. 

Quando tiramos a pressão arterial de um paciente, temos dois números. O primeiro, denominado pressão máxima ou sistólica, depende da aorta e dos grandes vasos. Quando eles estão esclerosados, com placas de gordura, geralmente calcificadas, a pressão máxima ou sistólica se eleva. A segunda, chamada pressão mínima ou diastólica, depende da resistência vascular periférica. Os medicamentos hipotensores agem nesse local, diminuindo a pressão diastólica. Quando a aorta e os grandes vasos estão relativamente normais, ao se abaixar a pressão diastólica, a sistólica acompanha essa queda. Se a aorta e os grandes vasos estão com placas de ateroma, em virtude de hipertensão, idade avançada, dislipidemia, diabetes etc., a pressão sistólica desce pouco ou não desce e a diferença entre as duas pressões aumenta muito. O que não é saudável. Quando um hipertenso é transformado em hipotenso, seu coração, caso esteja aumentado, diminui e a velocidade de instalação de lesões vasculares tem grande restrição. 

Para transformar um hipertenso em um hipotenso, é necessário usar diuréticos. Há bem mais de 100 anos, descobriram que a ingestão de sal era a principal causa da hipertensão. Há mais de 80 anos, verificaram que determinados habitantes de certos povos ou de algumas tribos indígenas que não ingeriam sal nunca ficavam hipertensos. 

Os diuréticos são substâncias que eliminam pelo rim o sal que ingerimos. O mais utilizado, já que fornecido gratuitamente pelo governo, é a hidroclorotiazida, administrada uma vez ao dia, nos casos leves, ou duas, nas hipertensões mais severas, eliminando o sal que comemos e tornando desnecessário o uso de dietas sem sal. Comer sempre sem sal, para quem se habituou a ingerir comida salgada, diminui muito a qualidade de vida. Como a hidroclotiazida não age durante as 24 horas do dia, deve-se administrar, em vários casos, um comprimido após o jantar, para eliminar o sal ingerido nessa refeição. 

Muitos não acreditam no que estou dizendo, e existem até mesmo trabalhos que tentam comprovar que estou errado. Realmente, quando as lesões vasculares, mormente coronarianas, são graves, ao se abaixar muito a pressão, o paciente piora e pode até mesmo ocorrer uma oclusão vascular séria. A transformação de um hipertenso em um hipotenso nem sempre é obtida. 

Ao atingir 70 anos de idade, fui aposentado, primeiro, no Hospital das Clínicas e, pouco depois, na Universidade de Mogi das Cruzes. Nessa ocasião, recebi o honroso convite para fazer parte da equipe médica do Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes, a qual integro até hoje. Esse instituto foi um dos primeiros do Brasil a receber a Gestão de Qualidade ONA 3. 

Atendendo portadores de doença renal crônica avançada, pré-dialítica, observei que eles mantinham quase sempre o pH urinário 5. Pedi ao colega Matsuda que observasse o pH dos pacientes em hemodiálise. Mais da metade deles, que ainda urinam, apresentam urina ácida e densidade urinária parecida, mas nem sempre igual, a 1,010.  

Em 1898, von Korányi, estudando o ponto de congelamento da urina, ensinou-nos que os portadores de nefropatias graves eliminavam menos partículas na urina, perdendo, portanto, a capacidade de concentração urinária. A esse fenômeno ele deu nome de hipostenúria. Com a idade, nossos rins vão envelhecendo, diminuindo a capacidade de concentração e passando a aumentar o volume urinário noturno. Em 1918, Volhard concluiu que, na doença renal muito avançada, o ponto de congelamento da urina seria igual ao do plasma, chamando isso de isostenúria. Com o aparecimento de métodos para medir a densidade da urina, constatou-se que esse ponto de congelamento do plasma e da urina correspondia à densidade 1,010. Concluía-se, por esse motivo, que o pH da urina deveria ser igual ao do plasma, semelhante a 7 e neutro. 

Matsuda e eu provamos que, quando um rim consegue emitir urina, é capaz de eliminar ácidos e sua densidade é semelhante, mas nem sempre igual, a 1,010. Von Korányi tinha razão, Volhard não. Nem sempre os renais crônicos têm isostenúria ou pH semelhante a 7. 

Há uns 80 anos, estudou-se a circulação dos vasos dentro dos rins. Mas, na medida em que os vasos ramificavam e diminuíam muito de calibre, os autores não conseguiam acompanhá-los e, por esse motivo, descreveram uma vascularização renal mais imaginada do que real. No ponto final, esses vasos formam um novelo de arteríolas denominado glomérulo. Nesse local, inicia-se a formação da urina. O plasma é filtrado pelas membranas glomerulares, e o líquido resultante é trabalhado por uma série de túbulos para formar a urina. Esse conjunto de glomérulos e túbulos foi denominado néfron, por Braus, em 1924, considerando-o a unidade fundamental dos rins. Os rins têm cerca de 2 milhões de néfrons. Nefrologistas importantes, como Homer Smith, em 1951, e Pitts, em 1963, desenharam suas famosas figuras de néfrons, bastantes reproduzidas, em que a arteríola eferente, que sai do glomérulo, reabsorveria a maior parte do líquido, que fora filtrado pelos glomérulos e reaproveitado pelos seus túbulos, não fazendo parte da urina. Cada néfron agiria como uma unidade funcional automática. 

Na década de 1970 a 1980, pesquisadores alemães, trabalhando para o laboratório Hoechst, utilizando injeção arterial de silicone-rubber, idealizaram um método para acompanhar e filmar a circulação dos vasos renais. Descobriram que as arteríolas eferentes de glomérulos situados próximos ao córtex dos rins irrigariam apenas parte de seus túbulos mais corticais, bem como de túbulos vizinhos de outros glomérulos. As arteríolas eferentes de glomérulos mais profundos irrigariam partes mais profundas também de vários glomérulos, de modo que todos os plexos vasculares peritubulares se misturariam e o filtrado glomerular de cada glomérulo seria trabalhado por sangue proveniente de vários glomérulos. 

Primeira conclusão: os néfrons agem em conjunto e a urina elaborada por cada um é proveniente de néfrons distintos. 

Serei bastante sucinto. Pelos vasos que entram nos rins, entram apenas nervos simpáticos, encarregados de fazer os rins funcionarem. Nervos sensitivos não entram, apenas acompanham os vasos que vão para a superfície dos rins. Por esse motivo, tudo que ocorre dentro dos rins não dói. Há poucos anos, descobriu-se que esses nervos simpáticos têm fibras aferentes e eferentes, isto é, trazem informações dos rins ao cérebro e levam ordens do cérebro aos rins. 

Segunda conclusão: as ações dos néfrons não são automáticas, mas coordenadas pelo cérebro através do sistema nervoso simpático. 

Conclusão final: a afirmação de que o néfron é a unidade fundamental dos rins é um mito. 

Com a idade, as mulheres, mais que os homens, apresentam­ diminuição da função tireoidiana. Por esse motivo, ao realizarmos um check-up de um paciente, aprendemos a solicitar sempre a dosagem do TSH (hormônio estimulador da tireoide), além do T3 e do T4. Por ter descoberto que o TSH se altera antes de qualquer sintoma clínico, ao contrário do T3 e do T4, passei a pedir apenas a dosagem do TSH de meus pacientes. Há pouco tempo, tomei conhecimento de que outros autores já haviam chegado à mesma conclusão.­ 

Num check-up, também peço sempre a dosagem do ácido úrico. Quando o ácido úrico de um paciente está bem normal, ou seja, entre 3 e 5 mg/dL, aprendi que não há necessidade de ficarmos repetindo essa dosagem, porque apenas nos estágios finais, 4 e 5, de uma doença renal crônica, quando a função renal estiver rebaixada a bem menos de um terço, é que essa dosagem começará a ficar acima dos valores normais. 

Adquiri essas habilidades com o Prof. Dr. Antonio Barroa de Ulhôa Cintra, nas visitas diárias de pacientes internados na 1ª Clínica Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC da FMUSP). Tínhamos de dizer qual a dosagem de hemoglobina de um paciente olhando a palma de suas mãos e a mucosa de suas conjuntivas. Ele sempre perguntava que exames havíamos solicitado e quais seriam os seus resultados. Assim, aprendíamos quais exames seriam úteis para o diagnóstico e quais seriam pouco necessários, uma vez que já sabíamos a resposta mais provável. Naquela época, todo paciente a ser admitido no HC, mesmo nas consultas de ambulatório, tinha de fazer 5 exames, um dos quais o de fezes parasitológico. Comumente, existiam parasitas, muitas vezes assintomáticos. Sem sinais e sintomas, era impossível adivinhar o resultado. Hoje não. Graças à grande melhoria ambiental em São Paulo, os exames de fezes vêm sempre negativos e poucas vezes são solicitados. Não existem mais nem moscas nem pulgas nas ruas e nos lares. A saúde não vai tão mal assim.  

Jenner Cruz