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Nos remerciements, Laennec!

21.10.2013 | Gerais

Idoso, teimoso Professor, não arreda o pé da enfermaria! Sua vida, o bate-papo com doutorandos e residentes! Melhor seria se acompanhado pelo aspirante à carreira docente – grau de mestrado ou de doutorado – para os complementos: atualidade… métodos laboratoriais de diagnóstico… fármacos de última geração… interpretação das charadas, corrija-se, das siglas… Qual! Mesmo sem o apoio, posta-se diante dos moços que se exercitam. Sem se intimidar, pois que descobriu que narrativas, esquecediças, soam-lhes surpreendentes. Pelo menos o que lhe parece… Diante de si — renovação periódica —, 12 a 15 pares de orelhas! Curiosidade — da nova leva —, no primeiro contato com o revelho! [terá algo a ensinar?!…] Desconhecimento de parte a parte, a cada nova turma, obriga-se ao preâmbulo:

– Este que VV. encaram… aposentado, idade encostando nos noventa, cá está pelo contato, agradável, com os médicos do futuro. Quem sabe… alguma inspiração… venha a despertar-lhes a vocação adormecida… … e sentencia:

– A formação de um médico jamais se completa, sempre em renovação… [meninada ignora que vem cultivando, adubando, do crepúsculo matutino ao vespertino – medicina, seu fascínio. Moças (muitas), rapazes (poucos)… alvos aventais, colar profissional pendurado ao pescoço, iPad no jaleco…. expectativa do que estará por vir, do velhão!]

Aluno mais despachado – disposição para encurtar o tempo, apressa-se em anunciar a história de seu doente… a do adulto, mal chegado aos 30, internado à antevéspera: febre alta (20 dias), sudorese, tosse produtiva, escarro com laivos de sangue, perda do apetite, insônia, emagrecimento… Confirmação em cima da hora: TB pulmonar! (esta, até o Mestre a traduz!) [Notável! No H.U. bem equipado, diagnóstico rápido. Tarda só a doença! Influenza, pneumonia, brucelose, infecção por hantavirus, legione- lose, peste, antraz, sezão (sezão?! existe isso?) — miméticas outras — não carecem da discussão, ora! pra quê?…] Retoma o Mestre:

Foi no século XVIII que Villemin transmitiu-a [tuberculose] ao coelho, demonstrando sua natureza infecciosa.- Responsável por 1/4 da mortalidade geral! Na França, à época, mais de 200.000 casos novos, sobretudo entre jovens, das suas idades! [Jean-Antoine Villemin (1827-1892), médico francês, demonstrou em 1865 que a tuberculose é doença infecciosa] … olhar do Mestre a uns e outros…]

– Todos, VV., ao pescoço… o colar! Do grego para o francês, para “exame do peito”… o estetoscópio! Um presen- te… com carinho e amor dos pais, envaidecidos, ou do(a) namorado (a), ao pisarem na Faculdade. [surpresa! pitonisa, o Mestre!]

Segue com a narrativa…

 Médico existiu, frágil, pequeno no tamanho, mas quatro nomes! René plus Théophile plus Marie plus Hyacinthe– Jacinto, Sobrenome — o do bretão — maior que os prenomes: Laennec. Deveria ter sido advogado — como o pai —, mas tio Guillaume Guilherme orientou-o para a medicina. [Oncle Gui, Diretor da Escola de Medicina, criada por Napoleão, em 1808 em Nantes! (já conveniente, à época, ter parente bem situado na Medicina)]

… René Théophile, precoce! 14 anos e meio, estudante de esculápio! Prontamente admitido como cirurgião de 3a classe nos hospitais militares de Nantes (tempos das guerras napoleônicas, vitórias e derrotas). Belo desempenho!

… transfere-se para Paris. Folgas?!… Enquanto colegas afluíam ao Sena, aos jardins, aos cafés — fazendo jus à estouvada, à boêmia mocidade —, serviam ao esquálido René para compor suaves melodias. Lia e escrevia latim ao correr da pena; razoavelmente, o grego.

… à época, predomínio da medicina de sintomas. Médicos, meros espectadores: da tosse, do vômito, das perturbações respiratórias, simulatórios de entidades metafísicas impenetráveis, de entrechoques — vida versus morte, travados no organismo! Limitavam-se a ouvir. Prática?! Manual?!… Desdenhosamente relegada aos barbeiros!… Novas técnicas?! Desprezadas, desacreditadas! …

… hospitais lotados por veteranos, os que sobraram das derrotas imperiais. Famintos, tuberculosos, ao regresso! Diferente, ele! Aquele amigão! Pacientemente, tratava-os à hora e tempo. Ouvia-os, o intérprete, dos companheiros bretões no Hôpital Pitié-Salpêtrière…

…ao lado de Dupuytren e Bayle, em pouco, considerado prodigio da medicina! [Baron Guillaume Dupuytren (1777-1835), anatomista francês e cirurgião militar; tratou das hemorroidas de Napoleão Bonaparte. Conhecido pela contratura de Dupuytren. Gaspard Laurent Bayle (1774-1816), médico francês, patologista]

… acompanha Corvisart, Pinel, Bichat, donos da cena médical Com Corvisart, à mesa de autópsia, confrontava lesões e sintomas; com Bayle, redigia, meticulosamente, as observações dos enfermos e o relatório das autópsias. Época áurea da Anatomia Clínica! [Jean-Nicolas Corvisart (1755-1821), médico francês, tradutor da obra de Leopold Auenbrugger sobre percussão torácica, técnica que desenvolveu e aperfeiçoou, “Inventum Novum, do latim ao francês”. Ganhou notável reputação como cardiologista. Foi médico de Napoleão Bonaparte, seguindo-o, durante seu exílio, na ilha de Santa Helena (território). Philippe Pinel (1745-1826,) médico francês, julgado por muitos o pai da psiquiatria. Considerou que os seres humanos com perturbações mentais eram doentes; ao contrário do que acontecia na época, deviam ser tratados, não de forma violenta. Primeiro a tentar descrever e classificar algumas perturbações mentais. Sua obra “Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie”. Marie François Xavier Bichat (1771-1802), anatomista e fisiologista francês. Lembrado como o pai da moderna histologia e patologia. Ainda que sem microscopia, foi hábil para estudar a estrutura do corpo humano; conceituou tecido como entidade distinta. Um, dos 72, na Torre Eiffel] 

… aos 22 anos, concurso de medicina e cirurgia, 1º lugar! Rege disciplina própria de anatomia patológica. Distingue as alterações da serosa que recobre o peritônio, comunicando, pela primeira vez, a peritonite.

… nas apresentações, invariavelmente, a empatia, a modéstia! Débil, tímido, sem ambições. Hábitos simples. Generosidade com os humildes. 

… aos 23, o doutorado . … sobre cistos hidáticos: demonstração dos ninhos de parasitas vivos, semelhando vermes. 

… com Cuvier, exercita anatomopatologia, o que não lhe assegura vida condigna. [Georges Léopold Chrètien Frédéric Dagobert Baron Cuvier (1769-1832), importante naturalista da primeira metade do século XIX, desenvolveu métodos e programas de pesquisas para várias áreas da História Natural] 

… retoma o exercício clínico; então… sucessos, projeção! Reclamado pelo jet-set que empolgava a nação: Chateaubriand, Mme. Duras, Cardeal Fesch… [François René Auguste de Chateaubriand (1768-1848), também conhecido como Visconde de Chateaubriand, escritor, ensaísta, diplomata e político francês imortalizado pela obra literária de carácter pré-romântico. Pela força da sua imaginação e o brilho do seu estilo, uniu a eloquência ao colorido das descrições; exerceu profunda influência na literatura romântica de raiz europeia, incluindo a lusófona. Claire, Mme. Duras (1777-1828), escritora francesa mais conhecida pelo romance “Ourika”, sobre igualdade racial e sexual. Joseph Fesch (1763-1839), político e clérigo francês de origem corsa e suíça, tio materno de Napoleão Bonaparte; entre outras funções, arcebispo de Lyon, de 1802 a 1836, e embaixador francês junto da Santa Sé. Nos anos finais da sua vida, depois do exílio de Napoleão para a ilha de Santa Helena, viveu em Roma, albergando, em sua casa, a meia-irmã Maria Letizia Ramolino, matriarca do clã Bonaparte] 

… em 1816, nomeação para o Hospital Necker… quando inventa a ferramenta que assinalará o profissional da saúde! 

[… interrupção… Mestre perscrutando… estaria entediando? … porém, ambiente, atmosfera, quietude… levam-no a prosseguir] 

… certo dia, à folga do Hospital Necker, encontrado no Jar­din des Tuileriestelhas, indústria de fabricação das . Crianças, a brincar… Riam ao transmitir. Riam ao ouvir. Sons com pequenos gol­pes de alfinetes nas extremidades de uma viga. Assoma-lhe à mente a rapariga obesa, sinais de insuficiência cardíaca;­ tentara a percussão, recém-divulgada por Auenbrugger, mas o efeito perdia-se nas paredes acolchoadas de gordura. [Leopold Joseph Elder von Auenbrugger (1722-1829), médico austríaco, criador da percussão torácica] 

… por suas próprias palavras:lê-se em L´Aventure de LA MÈDICINE, Philippe Gorny, JCLattès, 1991 “Fui consultado, em 1816, por uma jovem, com sintomas de cardiopatia, na qual as aplicações, da mão e da percussão, não dariam resultados em razão da cor­pulência avantajada. Idade e sexo, da paciente, impediam-me da espécie de exame de que acabo de expor [a aus­cultação imediata]; ocorreu-me, então, o fenômeno acús­tico muito conhecido: quando se aplica a orelha à extre­midade de uma viga, percebe-se, nitidamente, o golpe de alfinete dado na outra extremidade. Ocorreu-me que poderia tirar partido da observação. Peguei folhas de um caderno, enrolei-as para formar um tubo, prendi-as fortemente, apliquei a extremidade sobre a região precordial; a outra, à orelha. Fiquei surpreendido e satisfeito, ao mesmo tempo, por perceber os batimentos do coração de maneira mais nítida e distinta que pela aplicação imediata da orelha. Do que presumi que o meio poderia ser o método útil para o estudo dos batimentos do coração, além de todos os movimentos que podem produzir ruídos nas cavidades do peito”. 

… daí à confecção… o cilindro de cedro ou de ébano, com canal central, alargando-se em pavilhão na extremidade inferior, para interposição entre a orelha e o peito do doen­te. Artefato simples. Sons da caixa torácica para a orelha do médico. Ausculta mediata. Revolucionária!

… em sequência — appliance —, repeteco, estendido, popularmente, a todos os internados. Aplausos, créditos! dos seguidores. Desprezo, zombaria! dos cépticos… 

… segue acumulando descobertas: bronquite, enfisema, bronquiectasia, pneumonia, pleuresia, caseificação, miliar, peritonite, linfonodal, vertebral, encefálica, infarto pulmonar, neoplasia… o “peito que fala”! (da caverna, pulmonar, voz que sai da caixa torácica para o tubo: pectorilóquia!)… atribuinas à unicidade da doença… 

Aduz o Mestre: 

— Citações… Vocês têm-nas ouvido, ainda que as exibições das imagens internas ofereçam-lhes, ao dia de hoje, além da preceituação, “latitude”, “longitude”, dimensão, consistência, profundidade… das lesões. Àqueles idos, Laen­nec, supunha-a [tuberculose] hereditária. Ignorava o contágio! (Koch, ainda no camarim, entregue à “maquiagem”, não subira ao palco…) 

… descreve lesões. Anatomopatologista na alma, cirurgião na estrutura, confronta achados de autópsia com sinais clínicos. Patologias — a pulmonar, a cardíaca —, desvendou-as, o homenzinho gigante

… monarquista, ferrenho, a convicção não lhe foi particularmente favorável, ainda assim, transformado no maior clínico ao começo do século XIX! 

… certa feita, ao passar por debaixo das janelas da enfermaria, doente escarra sobre ele. Chapéu emporcalhado pelo esputo! Queriam admoestar o enfermo, não consente. Observa o escarro e: 

… — “Não lhe digam nada, ao pobre… não sobreviverá para repetir!” 

… missão cumprida, vida gasta. Emagrecera tanto… “seu corpo não fazia sombra” (de todos os tempos, a fofoca…). Volta à Bretanha pela última vez. Para morrer, prematuramente, aos 45 anos. Vítima da fitíasede phthisis, o apelido secular da peste branca. Lealdade para com a doença de sua eleição?! De sua filiação?! [… mãe também subtraída pela tísica…] 

… “Laennec resta para nós médicos um espírito luminoso e inventivo… ” [Jean Bernard, a seu respeito] “Terá sido o pioneiro da grande transformação da medicina, que passa do estado de arte, aproximativa, à de ciência, por vezes, exata. Sua glória… cantada no mundo!” [Jean Bernard Léon Foucault (1819-1868), físico e astrônomo francês] 

Todos se levantam para dar passagem à maca. Paciente retornando do Serviço de Imagem para a enfermaria de isolamento. Reunião terminada. No próximo encontro, terá algum assunto — o Mestre —, pra enrolação, como o de hoje?… 

O nascimento do estetoscópio! Do musicômano! vidrado em sinfonias executadas por autores viscerais: coração, pulmão,­ pleura… Do probo! Pela salvaguarda do recato do exa­minando… Do auditor! Do balbucio da vida intrauterina…­ (1781-1826) Nossos agradecimentos, Laennec! 

Arary da Cruz Tiriba 

Professor titular, aposentado, em atuação voluntária (UNIFESP/EPM), Membro Emérito da Academia de Medicina de São Paulo, ocupante da Cadeira 81, Adolpho Lutz