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“O trabalho em campo no Xingu é sustentado pelo tripé ensino, pesquisa e assistência”

14.08.2019 | Gerais

Há 54 anos, o Projeto Xingu – organizado pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo – resiste com a promoção de saúde a povos indígenas brasileiros. Para traçar um recorte histórico e perspectivas do programa, o professor da EPM/Unifesp Douglas Antonio Rodrigues foi o palestrante da tertúlia do mês de agosto da Academia de Medicina de São Paulo, realizada na Associação Paulista de Medicina na última quarta (14). 

Conforme relembrou Rodrigues, a ocupação dos espaços vitais teve início em 1941, no governo Getúlio Vargas, com a marcha para o Oeste. A ideia nacionalista, que visava ocupar “os espaços vazios brasileiros”, começou em São Paulo, atravessando o estado de Goiás e adentrando Mato Grosso pelo Rio Araguaia, com a instauração de bases e vilarejos durante o trajeto. Mais tarde, a expedição passou a ser comandada pelos irmãos Villas-Bôas. 

Já a demarcação de terras, com a criação do Parque Xingu, ocorre em 1961, no governo Jânio Quadros. O parque possui uma extensão territorial de 2.797.491 hectares, com uma transição entre Cerrado e Floresta Amazônica, sendo uma área rica em biodiversidade. De acordo com o Censo de 2018, há 7.400 habitantes, com 14 etnias distribuídas em 106 aldeias próximas aos cursos de água. 

“O projeto de saúde no Xingu surgiu em 1965, quando havia uma vulnerabilidade em qualidade de vida dos povos, com casos de coqueluche e sarampo. Em 30 dias, 114 pessoas morreram em virtude de uma epidemia de sarampo. Em uma população de 600 pessoas, representou a perda de 1/6, mesmo com o apoio médico”, recorda o professor, que também é gerente do Ambulatório do Índio do Hospital São Paulo e coordenador do Curso de Especia lização em Saúde Indígena da Unasus/Unifesp, na modalidade de Ensino a Distância. 

Avanços e desafios assistenciais 

Criado em 1988 pela Constituição Federal brasileira, o Sistema Único de Saúde só reconheceu a necessidade de atender as áreas indígenas em outubro de 1999. “Em 10 anos de SUS, o índio era considerado federal, assim como o mosquito transmissor da malária. Hoje, temos dentro do sistema uma rede de serviços de atenção primária no interior das terras indígenas, o que é um grande avanço, além de um subsistema de gestão federal. Toda a atenção primária da saúde pública é de responsabilidade do município, menos as terras indígenas, que são de gestão da União”, esclarece o especialista.

Ele participa do trabalho de campo desde 1981. “Houve mudanças significativas de lá para cá, entretanto, a identidade cultural das etnias permanece muito forte. E o nosso trabalho, desde a composição da primeira equipe, é sustentada pelo tripé ensino, pesquisa e assistência.” 

A atual política de saúde foi outra contribuição importante do Programa Xingu, com a formação de agentes comunitários indígenas. “Só conseguimos controlar a malária depois que os índios entraram no circuito de controle da doença. Aprenderam a fazer diagnóstico microscópico e o tratamento precoce em diferentes aldeias. Hoje, não temos mais surtos da doença. Isso ocorre porque são pessoas da comunidade, o ‘branco’ fica muito pouco tempo em uma aldeia e não tem acompanhamento constante”, explica. 

A arte educativa é outro recurso utilizado pelo programa que, desde os anos 1960, conta com a participação de alunos e/ou residentes de Medicina. “Sempre com a ideia de disseminar o conhecimento e a troca, a equipe é composta também por pajé, raizeiro, agente de saúde e parteira, não apenas por médico, enfermeiro e dentista”, ressalta Douglas Rodrigues. 

Em tempos de avanços tecnológicos, integrar saúde em espaços longínquos com poucos recursos digitais é um desafio constante para o grupo. “Temos que nos virar com a história, o exame clínico e o diagnóstico epidemiológico. É frequente e não deixa de ser interessante.” 

Entre a etnia de xavantes, 30% dos adultos são diabéticos. Em recorte de gênero, entre 50% e 60% das mulheres acima da faixa etária dos 30 anos têm diabetes do tipo 2. Há ainda uma prevalência de sobrepeso e obesidade em 70% da população adulta. “Temos encontrado prédiabetes em 17% da população em torno dos 20 anos, o que significa uma explosão de novos casos em poucos anos. Rastrear e dialogar com eles sobre isso, com oficinas de culinária, têm sido o nosso papel neste sentido”, informa o pesquisador. 

Por fim, ele alerta sobre o desmatamento constante na área, que afeta a população originária. “Isso quebra a economia, a forma de viver desses povos e gera doenças. Não adianta levarmos para lá os mais sofisticados recursos tecnológicos se não conseguimos garantir minimante segurança alimentar e condições de vida adequadas, com saúde.” 

Homenagens 

O médico Roberto Baruzzi foi o responsável pela criação do Projeto Xingu da EPM/Unifesp. Falecido em 2016, foi o segundo homenageado, depois de Orlando Villas-Bôas, em ritual fúnebre kuarup dos povos indígenas. “Fui um dos privilegiados com o convite e acompanhei aquela emocionante cerimônia – dedicada apenas a membros das nações indígenas – mas que teve uma exceção aberta para o professor. Isso é facilmente entendido porque ele acompanhou durante décadas o processo de contato do nosso mundo com as etnias indígenas, e trabalhou muito particularmente com as questões das imunizações desses povos”, rememora o presidente da Academia e da Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral. 

Amaral também enfatizou o trabalho hoje liderado pelo professor Douglas Antonio Rodrigues: “Baruzzi partiu tranquilo porque conseguiu deixar um substituto à sua altura, um médico que vive há muitas décadas no programa, sendo referência no assunto da saúde indígena. É importante destacar que o programa está em boas mãos”. 

Texto: Keli Rocha – APM 

Fotos: Marina Bustos