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TRAJETÓRIAS QUE SE ENTRELAÇAM

01.02.2016 | Gerais

Antonio Carlos Gomes da Silva

Quais convergências poderiam existir entre a minha trajetória na Medicina e a do Professor Emérito Euryclides­ de Jesus Zerbini, figura ímpar da Medicina brasileira? 

Eu, um clínico, Alergologista, 25 anos mais moço, e ele, um Professor de renome internacional, em decorrência de uma trajetória médica brilhante, responsável por importantes e inolvidáveis marcos na história da Cirurgia Cardíaca. 

Teria algo a ver com o primeiro transplante de coração realizado na América Latina, o quinto no mundo? Haveria uma relação clínica com o lavrador João Ferreira da Cunha, conhecido como João Boiadeiro, o primeiro paciente transplantado? Certamente não. 

Seria por ter aprendido com ele a ser humilde, uma estrela de primeira grandeza que nunca precisou se promover para ser notado? Por essa razão também não foi, pois sinto­me muito distante de sua incomparável modéstia. 

Ou pela coincidência de pertencermos à Academia de Medicina de São Paulo, onde ele ocupava a cadeira 29, cujo patrono é o Professor Benedito Montenegro, e eu, ainda ocupante da cadeira 123, que tem como patrono o saudoso amigo Rubens Monteiro de Arruda, em sua época um renomado Cirurgião de Tórax, idealizador e fundador da Faculdade de Medicina de Santo Amaro? 

Nenhuma dessas hipóteses. Mas posso me orgulhar de que, em três momentos históricos, tive minha trajetória de vida entrelaçada com a deste incomparável nome da Medicina mundial, embora, no último deles, infeliz para todos nós. 

Primeiro momento. 

Éramos recém ­ingressos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 1958. Calouros curiosos e felizes por termos do outro lado da rua um Hospital Universitário, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (HC), o nosso hospital. Invariavelmente, apesar de alunos do primeiro ano, perambulávamos pelo HC lá pelas cinco da tarde, ao final dos estudos do período vespertino. 

Era necessário porque a aridez do curso médico nos primeiros anos nos deixava distantes do objeto central de nossa vocação, o paciente. Para amenizar essa lacuna, íamos ao altar da celebração da fase excelsa do exercício da Medicina destinado ao paciente, o hospital. E, numa dessas tardes, fomos, eu e mais alguns colegas de turma, até a ala central do 10º andar do HC, um local diferente, e assim designado porque não encontramos pacientes. Apenas portas fechadas. Por curiosidade e atrevimento, próprios da juventude, abrimos uma delas: um anfiteatro encimando uma sala de cirurgia da qual era separado por amplo vidro translúcido. Destinava­se ao ensino de cirurgia. 

Naquele momento, uma enorme equipe de cirurgiões operava um paciente. Apercebendo­se da presença de estudantes no anfiteatro, o cirurgião principal solicitou o microfone e indagou quem éramos. Respondemos: somos alunos do 1º ano. Apresentando­se como Doutor Zerbini, informou­ ­nos que estava sendo executada uma cirurgia para correção de válvula cardíaca a céu aberto. A primeira? Uma das primeiras? O tempo passa. Lá se vão 57 anos, e a memória de um fato tão distante não me permite ter a certeza de qual cirurgia era realizada naquela tarde, muito menos de alguns detalhes que o Professor Zerbini nos transmitiu. Sem dúvida foi em 1958, pois estávamos no 1º ano médico. 

Segundo dados coletados pelo confrade Sergio de Almeida Oliveira, em agosto de 1958 foi realizada a 1ª cirurgia cardíaca para correção da Trilogia de Fallot a céu aberto, ou seja, com circulação do sangue pela via extracorpórea, marco inicial de uma acelerada sequência, cuja milésima cirurgia foi comemorada em abril de 1963. 

De qualquer forma, eu e alguns colegas de turma, que a longínqua data me impede de identificar, fomos testemunhas oculares de uma importante fase da evolução da cirurgia cardíaca em nosso país, a caminho do 1º transplante do coração, realizado pelo Professor Zerbini e sua equipe, em 26 de maio de 1968, portanto 10 anos depois. 

Segundo momento. 

Passaram-se os anos e, em 1978, assumi a Diretoria da Faculdade de Medicina de Santo Amaro (FMSA), atual UNISA. 

No ano seguinte, 1979, fui procurado por um aluno do 5º ano médico, o José Alberto dos Santos, que tivera uma ideia: realizar um Congresso Acadêmico­Médico, organizado pelos alunos, para apresentação e discussão de temas médicos relevantes por meio de palestras, verdadeiras aulas ministradas por eminentes professores médicos. Dei meu apoio e assim nasceu o 1º Congresso Acadêmico Médico do Brasil, o 1º COACME da FMSA, precursor de outros eventos similares com a mesma estrutura. No mês de agosto deste ano, 2015, efetuou­se a sua 36ª edição. 

Pois bem: quem os alunos escolheram para homenagear? O Professor Doutor Euryclides de Jesus Zerbini, convidado para a Presidência de Honra desse conclave. Na Sessão Solene de Abertura, por ocupar o cargo de Diretor da FMSA, tive a honra de recebê­lo, apresentá­lo e sentar­me ao seu lado. 

Finalmente o terceiro momento. 

Em 1992, assumi a Superintendência do HC, berço de meus conhecimentos médicos. No início de 1993, a comunidade “hagaceana” foi surpreendida por triste notícia. O Professor Zerbini tinha perdido os sentidos, se não me equivoco, enquanto tomava banho. Uma vez diagnosticada metástase de melanoma, os colegas neurologistas e neurocirurgiões decidiram operá­lo. 

Ocorreram então dois fatos inusitados. O Prof. Zerbini escolheu para operá­lo um neurocirurgião, de sua confiança, que não era o Professor Titular da Neurocirurgia. O local pretendido para a realização da cirurgia foi o Instituto do Coração, o INCOR, um dos 7 Institutos do HC, pois o Prof. Zerbini era a sua mais proeminente figura: contribuíra decisivamente para o início da construção desse Instituto em 1969, em decorrência do já mencionado 1º transplante do coração da América Latina, efetuado no ano anterior. 

Embora tenha levado em consideração todos esses antecedentes, entendi que deveria ser operado no Centro Cirúrgico da Neurocirurgia por razões técnicas, não tendo importância convalescer no “seu” Hospital, o INCOR, onde se recuperou da cirurgia. 

Alguns meses mais tarde seu estado de saúde piorou, exigindo internação. Em se tratando de figura ímpar da Medicina mundial, a mídia se mobilizou, solicitando comunicados diários de seu estado de saúde, tarefa do Diretor Clínico Prof. Dr. Antranik Manissadjian que, no início do meu mandato, a transferira para mim. 

Passei então a ter contatos diários com o eminente Professor, fato que me possibilitou apreciar ainda mais as suas qualidades aqui já exaltadas. 

Assim, até onde foi possível, redigia o boletim médico de comum acordo com nosso laureado Professor Zerbini, vivendo momentos que acentuaram ainda mais o meu apreço por este incomparável, fulgurante e lídimo representante da consagrada medicina brasileira. 

Para culminar o registro desses três momentos históricos, o Professor Euryclides de Jesus Zerbini veio a falecer no dia 23 de outubro de 1993, dia do meu aniversário. 

Antonio Carlos Gomes da Silva 

Membro da Academia de Medicina de São Paulo