A decadência da psiquiatria e a epilepsia, por Acad. Guido Arturo Palomba
Qual é a doença mental mais antiga da humanidade, que nunca mudou de nome e existiu até há cerca de 15 anos, quando foi alienada da nosografia psiquiátrica pelos psiquiatras filhos da CID?
Se o leitor lembrou-se dela, acertou: epilepsia.
Sim, a epilepsia é a mais velha doença mental, pois os antigos pensavam que o louco era um possuído pelo diabo, o qual vinha por cima e abatia o energóumenos (possuído), donde o nome epi, o que está acima; lepsis, abater; epilepsia, abater por cima.
Como ninguém gosta do diabo, até o final da Idade Média os doentes mentais eram postos à margem, alienados (alienatio mentis) pelas pessoas ditas normais. Chegavam ao extremo de escurraçá- los para fora dos muros das cidades ou embarcá-los na Nau dos Loucos, para que fossem despejados em terras longínquas, às quais ficavam presos não em correntes, mas à própria incapacidade de sobreviverem por si sós.
O destino dos doentes mentais começou a mudar com Johann Weyer (1515-1588), que escreveu Da ilusão do demônio (De praestigiis daemonium), em cuja obra mostrou que loucura não é possessão demoníaca. Disso resultou que, se não é coisa do diabo, como o indivíduo não consegue trabalhar e se autossustentar, é, portanto, vagabundagem. E, assim, o louco melhor sorte não teve: trancafiavam-no nos antigos leprosários, posto que, combatida a lepra, estavam desocupados. Com ele, a disputar o mesmo espaço, também internados, estavam os criminosos, as prostitutas e os doentes venéreos.
Foram necessários quase trezentos anos para acabar com essa acanhada concepção, cujo marco dá-se com Philippe Pinel (1745-1826), ao desacorrentar os alienados dos quartos e dos porões de Bicêtre, separando, de vez, o doente mental de todas as outras figuras da miséria.
O hospício tornou-se uma casa de abrigo, não mais um depósito pétreo de horror e de temor. É, então, introduzida a função médica.
A rake’s progress n. 8, William Hogarth
Porém, se o destino do alienado mental dava um grande salto e começava a melhorar, os tratamentos a que se submetiam ainda eram terríveis: Johann Reil (1759-1813) propunha aplicar aos insanos choques sensoriais intensos, como sustos, estrondos, a que chamou de psychical method of cure. À época, foram construídas verdadeiras engenhocas, como a cadeira giratória, adaptada por Joseph Mason Cox (1763-1818) e William Hallaram (1765-1825), que consistia em suspender o paciente, amarrado em uma cadeira ou maca, por meio de cordas fixadas no teto, à meia altura do solo e, então, procedia-se à rotação horizontal, acelerando cada vez mais até provocar vômito, vertigem e colapso circulatório, a ponto de produzir inconsciência, com ou sem convulsões. Havia outros alternativos terapêuticos, tais como purgantes, ventosas sarjadas, sedantes (ópio, morfina, hidrato de coral, cânfora) etc. Os hipnóticos barbitúricos foram sintetizados em 1863 (Bayer), mas somente identificados como tal em 1882; em 1903, passaram a ser comercializados sob o nome de Veronal, na Alemanha, e, em 1912, Gardenal, na França.
Mais cinquenta anos e um novo grande fato ocorre no destino dos doentes mentais, aliás, de grande valia: a descoberta do primeiro antipsicótico, a Clorpromazina, sintetizada por Charpentier, em 1950, e aplicada nas psicoses, além do Amplictil, em 1952, por Jean P. L. Delay (1907-1987).
A doutrina psiquiátrica desenvolvia-se, lapidava-se, e o conhecimento da mente humana atingiria o seu cume com as escolas francesa, alemã, austríaca, italiana, espanhola, brasileira e portuguesa, o que foi bem até o final dos anos 1980, quando começou a proliferação, desenfreada, da fabricação de remédios psiquiátricos e sua consequente decadência.
Quem produz, é claro, quer vender, e o método aplicado na psiquiatria é impecável, se não em ética, em eficiência: pega a todos.
Com efeito, para desbancar o antigo remédio, cujo nome está bem memorizado pelos médicos, o laboratório produtor do novo fármaco convida, a baixo custo, certas pessoas, muitas vezes pseudocientistas, “professores universitários”, para que façam “pesquisas”. Esses “cientistas” acabam “descobrindo” que o novo fármaco serve para, por exemplo, ansiedade. No entanto, para ansiedade, até então, funcionava muito bem a benzodiazepina, e o novo fármaco não pode com ela competir, porque perde em popularidade, quiçá em eficiência. Então, cria-se uma “nova doença”: em vez de ansiedade e fobia, síndrome do pânico, associando-a ao novo fármaco (as campeãs de vendas são o transtorno bipolar e a doença de Alzheimer; para a primeira, basta estar triste para tomar remédios; para a outra, é necessário tão somente ser idoso).
São promovidos simpósios, mesas redondas e congressos, evidentemente patrocinados pelos laboratórios produtores de remédios, nos quais apenas debatem sobre a nova droga e a “nova doença”.
A esses encontros vão estudantes ou recém-formados, muitos “intimados” pelos “cientistas” a comparecer ao evento, no qual a “nova doença” e a nova droga são o último grito da ciência.
E mais: essas reuniões são gravadas e, depois, transformadas em apostilas ou livros, que são distribuídos com as amostras grátis do remédio, pelos propagandistas do laboratório farmacêutico produtor, de consultório em consultório.
E, assim, o médico, que muitas vezes não tem tempo sequer para almoçar ou fazer um lanche com calma, lê aquela publicação como se fosse atualização científica para o bem dos pacientes, e assimila a mensagem.
Se entrar um caso novo em seu consultório, com sinais e sintomas que, porventura, possam se assemelhar ao que lhe ofereceram, o paciente é diagnosticado e medicado, respectivamente, com o nome da “nova doença” e com o remédio do momento.
E, por incrível que pareça, não para aí: essas “novas doenças” acabam entrando em grandes catálogos, como a CID (Classificação Internacional de Doenças). Esta, de tão problemática, sofreu 10 revisões, sendo certo que a 11ª está em fase avançada de gestação. Ressalte-se que coisas boas são duradouras ou perenes; as ordinárias mudam ao sabor dos fatos e dos interesses momentâneos.
Se esses catálogos fossem ficar nos seus devidos lugares, quais sejam, ser usados para fins de informática, reembolso seguro, licença-saúde ou algo do gênero, tudo bem, mas são, isso sim, tidos e usados como se fossem livros-textos de psiquiatria!
Por esse motivo, as atuais estatísticas (outra bobagem largamente usada pela psiquiatria contemporânea) dizem que 2% da população é usuária de droga; 3% de álcool; 4% tem a tal da bipolar; 7% dos idosos sofrem da doença de Alzheimer; 2,5% tem transtorno obsessivo-compulsivo; 1,5% é esquizofrênico; 2,5% sofre de síndrome do pânico; 1,5% tem anorexia nervosa; 2% tem disfunção cerebral; 4% tem distúrbio do comportamento. Ora, somando tudo, conclui-se que 30% da população, para esses psiquiatras filhos da CID, são doentes mentais, o que vale dizer, se Vossa Senhoria, ilustre leitor, estiver conversando com mais duas pessoas e estas lhe parecerem normais, com todo o respeito e excuses pour la honte, o louco é o Senhor.
Corrobora esse estado de decadência da psiquiatria a proliferação de escolas de medicina, mais de uma centena de novas faculdades foram abertas nos últimos anos, a despejar milhares de médicos malformados, para os quais, já que estamos em ano da Copa do Mundo, Jasper, Krafft-Ebing, Kraepelin, Bleuler não são clássicos da psiquiatria, mas provavelmente jogadores de futebol da seleção alemã do passado; Ferrio, Cassano e Ottolenghi, da italiana; Ey e Guelfi, da francesa.
E quanto à epilepsia (citada no início deste artigo) e suas múltiplas manifestações psíquicas e comportamentais, o mais antigo e multiforme mal psiquiátrico, que jamais deixou de existir, ao menos para aqueles que se dedicam com rigor aos misteres da psique, que fim deram a ela, já que não consta desses “livros-textos” tipo CID?
A resposta parece óbvia: não há interesse dos fabricantes de remédios, que preferem investir nos “moduladores de tudo”, do humor à libido, que servem para crianças e para idosos, receitados pelas grandes vítimas da propaganda, médicos que optaram pela via do conhecimento rápido, os psiquiatras filhos da CID. Trata-se, por fim, da decadência da psiquiatria ocidental.