Decadência da Psiquiatria VII – Psiquiatria forense paulista, antes e agora, por Acad. Guido Arturo Palomba
Em chão paulista, os doentes mentais criminosos eram internados no velho Hospício da Várzea do Carmo, fundado em 1856. No ano de 1895, havia quinze: três epilépticos; dois lipemaníacos; um demente; dois paranoicos; três loucos morais; e quatro com delírio de perseguição. Eles viviam juntos com os alienados mentais não criminosos, o que levou Francisco Franco da Rocha, então diretor do Serviço de Assistência aos Psicopatas, a procurar solução para os graves inconvenientes de deixá-los de permeio. Ao criar o Hospital do Juqueri (yuquerê-y, tupi = “rio do espinho que dorme”), em 1898, procurou um lugar para isolá-los dos demais internados, fato que marca os primórdios da criação de um verdadeiro Manicômio Judiciário, o que somente viria a acontecer três décadas depois.
Mas, ressalte-se que, desde muito cedo, Franco da Rocha dedicou-se à psiquiatria articulada às causas judiciárias, escrevendo artigos para os jornais da época, culminando com a edição do primeiro livro de psiquiatria forense brasileiro: Esboço de psychiatria forense, em 1904 (todas as publicações anteriores levavam o nome de medicina legal dos alienados ou algo no gênero, isto é: o termo “psiquiatria forense” em livro brasileiro aparece, com Franco da Rocha, pela primeira vez). A obra tem ensinamentos que, passados quase uma centúria, são guiões preciosos à especialidade. Com esse livro, inicia-se de fato
a escola paulista de psiquiatria forense.
Na mesma época, vários discípulos se dedicaram ao mister. O sucessor de Franco da Rocha foi Antonio Carlos Pacheco e Silva, o criador do Manicômio Judiciário de São Paulo, inaugurado em 1º de janeiro de 1934, quando 104 pacientes sujeitos à Justiça foram removidos para o novel prédio. (O Manicômio Judiciário de São Paulo foi importante escola da psiquiatria forense brasileira até meados da década de 1980, quando o prédio foi desativado, por influência do movimento antimanicomial, muito presente no Governo do Estado, à época nas mãos de Franco Montoro.)
Para dirigir a Casa, Pacheco e Silva escolheu André Teixeira Lima (médico de uma das colônias do Hospital do Juqueri e responsável pelos internados criminosos); ambos, com Franco da Rocha, formam os pilares da primeira geração de psiquiatras forenses paulistas (Franco da Rocha sonhou o Manicômio; Pacheco e Silva o criou; Teixeira Lima o dirigiu por 22 anos consecutivos).
A seguir, veio a segunda geração, extremamente profícua, na qual se destacam, entre outros, Alex Landgraf de Carvalho, José Roberto Bellelli, Henrique Levy e, de modo especialíssimo, Tarciso Leonce Pinheiro Cintra [intimamente saudado como o Rei dos PPs — abreviatura de personalidades psicopáticas — por ter sido grande conhecedor da matéria e o criador da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté (a primeira do Brasil, na qual eram internados os psicopatas criminosos)], e o mestre dos professores, Paulo Fraletti, psiquiatra forense inato.
À época, estudava-se e lecionava-se psiquiatria forense em três lugares: Manicômio Judiciário, com Paulo Fraletti; Casa de Custódia e de Tratamento de Taubaté, com Tarciso Leonce Pinheiro Cintra; e Instituto de Medicina Social e de Criminologia (IMESC), que tinha centro de estudos, com palestras, mesas redondas, produção de trabalhos, sediado à Avenida Consolação.
Os mestres fizeram discípulos, e veio a terceira geração de psiquiatras forenses. Entre eles, Antonio José Eça, Rubens Zaclis, Alfredo Hansen Terra de Souza, José Américo dos Santos, Carlos Roberto Hojaij e Guido Arturo Palomba. No IMESC, destacaram-se José Cassio Simões Vieira, Paulo Argarate Vasques e seu ilustre diretor, Luiz Gonzaga Sena Rebouças.
Sucede que essa terceira geração não formou discípulos, pois, quando pronta para ensinar à quarta geração, o cenário da psiquiatria no Brasil e no mundo ocidental passou por grande transformação, com a vinda da CID-10, da antipsiquiatria (poderosa opositora da psiquiatria forense) e da cultura dos psicofármacos, dando um grande salto para trás, saindo da doutrina clássica europeia, iniciada no século XVII e no ápice do desenvolvimento no século XX, para cair na psiquiatria norte-americana, empírica e momentânea, do século XXI.
Assim, graças ao marketing avassalador da indústria farmacêutica interessada em introduzir novos remédios, tendo a CID-10 como “bíblia da psiquiatria”, e à velocidade e onipresença da mídia digital, que a todos atinge e massifica, a quarta geração de psiquiatras forenses não escutou a terceira [hoje reduzida a poucos representantes (uns morreram, outros se aposentaram)] e tornou-se uma geração sem base.
Atualmente, é tudo improvisação: juízes a nomear neurologistas, psiquiatras infantis ou geriatras e psiquiatras clínicos, muitos ilustres em suas especialidades, como se esses pudessem bem se desincumbir dos misteres da perícia tal qual se desincumbem de seus afazeres no consultório.
A improvisação para que outros especialistas realizem perícias equivale a solicitar ao cardiologista clínico fazer cirurgia cardíaca. Só que, nesse caso, o clínico não se aventuraria com o bisturi e a pinça, pois sabe que não passará da epiderme; mas, no que se refere à psiquiatria forense, infelizmente o psiquiatra clínico se lança e faz o laudo. Quando a perícia é bem simples, é possível atuar com pouca base. Porém, se for um pouco mais complexa, ter lastro é fundamental; do contrário, perde-se, improvisa-se e não se instrui concretamente para que se faça a distribuição do justo, que é a missão do verdadeiro perito.
A grande verdade é que desta época atual, da decadência da psiquiatria, a psiquiatria forense não escapou.