Detalhes: do pronto-socorro à Faculdade de Medicina, por Acad. Manoel Ignacio Rollemberg e Dr. Roberto Saad Jr.
O início dos anos sessenta mudava de vez a face da vetusta Santa Casa de São Paulo. Suas enfermarias, embora sem um vínculo específico com o ensino, na realidade, há muito vinham constituindo-se em um verdadeiro núcleo de aperfeiçoamento de pós-graduação desde a transferência do hospital de ensino da Faculdade de Medicina para o Hospital das Clínicas. Aquele mesmo espírito jovem que permeara os realizadores da nova Faculdade de Medicina com Arnaldo Vieira de Carvalho à frente, na ocasião Diretor Clínico da Santa Casa, continuou latente nos profissionais que ali permaneceram, que sonhavam com a criação de uma nova faculdade, dessa vez dentro do próprio hospital. No dizer do Prof. Zeferino Vaz,
em sua aula inaugural nos primórdios de 1963, “tal qual na velha Albion…”, como gostava de se referir à Grã-Bretanha, “…fora a primeira vez em que isto acontecia no Brasil”.
No velho hospital em 1962, ainda havia um precário remanescente da chamada “porta”, serviço de urgência de velhos tempos. No entanto, havia premência da criação de um verdadeiro pronto-socorro, ante os reclamos dos vários serviços, onde tal necessidade era preenchida de maneira pouco ortodoxa. A solução encontrada, engenhosa na época, sugeria às enfermarias cirúrgicas que determinassem um número de leitos para atendimento de urgência, outorgando a elas a escolha de uma equipe cirúrgica responsável pelo plantão de um dos dias da semana. Antes, já fora criado um Centro de Recuperação Cirúrgico, embrião das futuras UTIs, complemento obrigatório a um serviço de urgência. E foi exatamente nessa fase que ocorreu o fato relatado.
O plantão de fim de semana era o mais movimentado, como consequência natural dos abusos regados pelos eflúvios etílicos (não se falava ainda nas outras drogas). O jovem paciente dera entrada com fortes dores no epigástrio. Contava que estivera com os amigos em um bar próximo tomando sua cervejinha e comendo um sanduíche. Nisso, chegaram alguns assaltantes armados que fizeram a “feira”. Em seguida à retirada dos meliantes, o jovem passara a sentir fortes dores na “altura do estômago”, motivo da sua vinda ao pronto-socorro. Após os exames de emergência, com presença de rigidez em “tábua” na altura do epigástrio, nítidos sinais de comprometimento peritoneal, ele foi submetido à laparotomia exploradora, encontrando-se uma perfuração estomacal, com um segmento de palito de madeira protruso em abdome livre.
Após abertura do estômago, o cirurgião verificou com espanto que o palito estava incluído em uma metade de sanduíche.
Na realidade, era uso comum em bares que, após a feitura de um sanduíche, este fosse dividido ao meio, com cada metade fixada com um palito de madeira, para conter o recheio. O que acontecera na verdade é que, com o susto do assalto, o jovem engolira praticamente a metade de um sanduíche com pão francês, que passara incólume, surpreendentemente, pelo esôfago e fora instalar-se na parede estomacal. A cirurgia terminou sem problemas, com o paciente recebendo alta sem sequelas.
Esses acontecimentos, agora impulsionados pela ala mais jovem, reforçados pela criação da novel Associação dos Médicos da Santa Casa, capitaneada pela atitude firme e indomável de Emilio Athié, criaram as condições e, como um verdadeiro aríete, levaram à criação da tão almejada Faculdade de Medicina.