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O porvir, uma incógnita…, por Acad. Manoel Ignacio Rollemberg

17.08.2012 | Tertúlias

“As convicções são as inimigas mais perigosas da verdade…”
Friedrich Nietzsche

Vivíamos os anos iniciais da década de 1980. Certa tarde, recebi em meu consultório um jovem acompanhado do pai. Este, um senhor alto, magro, espigado, vestido com discrição, mas com elegância, nariz empinado, falando com sotaque, carregando nos erres, típico da língua francesa: toda hora começava uma frase com o indefectível “allors”. Contou os problemas que os trazia até ali, e o filho, motivo principal da vinda, rapaz magro, alto e com um leve sorriso nos lábios, praticamente ficava apenas a observar em silêncio. Podia notar-se o temperamento leonino do pai. Após o exame físico e a análise radiológica, não tivemos maior dificuldade em estabelecer o diagnóstico, recomendando o tratamento devido. Nos retornos, aos poucos, o pai, sem nunca deixar seu comportamento afetado, contava-nos detalhes de seu viés empresarial.
Com a melhora acentuada do rapaz, confessou-nos que preparava o filho para ser craque de futebol, do que, aliás, não tinha nenhuma dúvida. Matriculara o futuro “astro” em uma escola de futebol dirigida pelo D. S., grande craque passado do futebol brasileiro, bicampeão mundial, do qual falava maravilhas, estando convicto de que o pupilo seria não apenas um autêntico craque, como também se tornaria o próprio goleiro da seleção. Prestava atenção num misto de curiosidade e paciência, pois não me lembrava de ter ouvido nada semelhante.
Passado algum tempo, resolveu falar um pouco mais de sua vida pregressa. Interessante, fosse por que fosse, aumentava gradativamente minha curiosidade. “Já deveria ter notado…” no seu falar característico, ou percebido, que seu sotaque denotava uma origem estrangeira. Na realidade, havia nascido na Rússia czarista, de ascendência “nobre”, sendo seu pai industrial.
Viviam à larga, com o produto de suas fábricas. Mas, subitamente, com o desastre da Primeira Guerra Mundial, o país vira-se engolfado na Revolução Russa, sendo repentinamente obrigados a fugir, no desespero, com a roupa do corpo. Foram com motorista em seu carro Mercedes-Benz até o Mar Negro, onde, a pedido, um pequeno navio cargueiro os esperava no meio da baia, deixando o carro, com o pouco que restara, nas mãos do motorista. Sua última lembrança do cãozinho de estimação, naquele momento dramático, isolado irremediavelmente na praia, ao ver seus donos partindo no pequeno bote, foi de vê-lo lançar-se ao mar, perdendo-se em seguida. Embora com tenra idade, essa imagem nunca mais o abandonou. O capitão do navio foi de extrema gentileza, apesar da precariedade da embarcação e da situação, deixando, atenciosamente, toda a família na única cabine disponível, a do próprio capitão. Atravessaram o Mar Negro em direção à Turquia, passaram pelo Bósforo e ancoraram em Istambul. Não puderam descer. Não tinham um documento sequer, nem mesmo algum numerário. Zarparam em direção ao Mar de Marmara, Estreito dos Dardanelos, Mar Egeu e, finalmente, Pireus, em Atenas. Ali, foram recebidos pelo primo, avisado pelo rádio, também de origem nobre e membro do Ministério do Exterior local, que conseguiu documentos, dinheiro, roupas etc., fazendo-os sair daquela situação terrível e embaraçosa. Permaneceram alguns dias rumando para a França, onde tinham outros parentes em melhor situação. Fixaram residência, adquiriram cidadania e, enfim, tocaram a vida. O que nunca pode entender, como fazia questão de enfatizar, fora o ódio dos bolcheviques por todos e por tudo que
representasse a classe empresarial da então Rússia, agora revolucionária, não se conformando com o tratamento, segundo suas palavras, ignominioso e injusto.
As coisas evoluíram dentro das previsões, mas eis que novamente outra guerra mundial os engolfou. Entrou para o exército francês, participou da Resistência contra o domínio nazista, tendo chegado ao posto de coronel. Foi condecorado, recebendo todas as honras ao final do conflito. Porém, a vida estava cada vez mais difícil. Ouvira falar do Brasil, país de grande futuro. Resolveu ensarilhar armas e bagagens e se bandear para os trópicos, mas agora se via insatisfeito com os novos rumos do país.
O rapaz recebeu alta e não tive mais notícias. Passados uns dois anos ou mais, lá estão de volta os dois. O filho voltara a apresentar os mesmos padecimentos. Mostrava-se, agora, bem mais alto, com físico avantajado. Cheguei a pensar e a quase perguntar sobre seus progressos “debaixo” das traves, já que seu pai vaticinara um futuro prodigioso como arqueiro. O pai vestia-se apropriadamente, mas com bastante modéstia. Julguei melhor me calar. Aquela empáfia passada havia desaparecido.
Seu aspecto se mostrava bem mais velho, um pouco alquebrado. Parecia ter esquecido o “allors”. Contou-nos sua odisseia.
Vendera tudo e retornara à França. Julgara que ali deveria ser seu verdadeiro lar. Foi mal recebido, até maltratado. Ele, “um herói da Resistência, deveria merecer maior consideração”. “Os tempos mudaram, as pessoas não têm mais respeito…”, contava-nos num misto de amargor, pesar e tristeza. Voltara quase sem dinheiro e posses (havia vendido tudo antes). Agora, enfrentaria um país com inflação, mas, como concluiu adiante, “aqui, as pessoas ainda tinham coração!”.