Quando surge a pessoa, por Acad. Affonso Renato Meira
O início da vida é uma preocupação que vem de sempre, e causadora de uma abordagem que ganha corpo pela repetição de seu uso. A vida é um contínuo, que desde seu surgimento no mundo jamais deixou de existir. A discussão bioética do assunto deve se pautar sobre, quando o ser biológico, produto da união de duas células vivas, os gametas masculino e feminino, realizada naturalmente ou através de uma reprodução assistida é considerado pessoa. Essa é uma preocupação antiga de estudiosos, que desde a Grécia de Aristóteles, vem procurando uma resposta a esta questão. Sem oferecer uma
resposta cabe fazer reflexões sobre o assunto.
O pensamento bioético surgiu nos tempos, em que no mundo, os cientistas começavam a desvendar o caminho de se realizar uma fertilização através de uma assistência artificial. E foi como quase uma imposição que a partir dos anos setenta do século passado essa matéria apareceu freqüentemente nas discussões éticas e se transformou em assunto obrigatório nas reflexões bioéticas.
A idéia de que a partir da fecundação de um óvulo, uma nova vida surgia predominava nos meios científicos e éticos e se não fosse aceita, pelo menos não era discutida. Essa conceituação caminhou pelos tempos, até que passou a se constituir em polêmica que levou a posições éticas que apresentavam contradições e que se modificaram para atender as mudanças da tecnologia da medicina na área da reprodução humana, e acompanharem no possível os preceitos das teologias. Em outros tempos
todos concordavam com a conceituação defendida pelos religiosos, de que na concepção ou durante os primeiros meses da vida intra-uterina, é que o ser biológico se caracterizava por ser humano. A precisão não era preocupação.
Alguns anos depois da metade do século passado, uma preocupação, que tinha se iniciado em 1798 quando surgiu a obra “Ensaio sobre o Princípio da População…” com as propostas de Malthus sobre o crescimento das populações e a interligação com um desenvolvimento econômico condizente, voltou a interessar o mundo. Quando alguns paises levantaram a questão populacional na V Assembléia Mundial de Saúde, realizada em Genebra, na Suíça uma grande controvérsia se iniciou. Foi um retorno a preocupação com o incremento da população em todo o mundo e em particular nos países menos desenvolvidos. Porém passadas às primeiras dúvidas diversos paises se propuseram a realizar programas de planificação familiar. Os primeiros programas cuidavam do controle da natalidade através de meios tradicionais, os únicos disponíveis até então. Os meios tradicionais do controle da natalidade prescritos eram a abstinência sexual, a programação pela tabela de Oginus e Knaus, o uso dos preservativos
mecânicos, principalmente o Condom ou seja o preservativo masculino, que no meio brasileiro se vulgarizou com a denominação de camisinha.
Embora o conhecimento do dispositivo intrauterino remonte a tempos antigos, quando os árabes introduziram pedras no útero de camelas, ao fazerem grandes travessias no deserto, ele só foi adaptado para utilização em mulheres em 1928, porém acompanhado de pouco sucesso. Sua aceitação veio a ocorrer no início dos anos sessenta do século passado, em razão de experiências que vieram a demonstrar a sua eficiência. Teólogos e religiosos posicionados contra o abortamento levantaram a
suposição de que o mecanismo de ação do dispositivo intrauterino era o de provocar o aborto. Entretanto estudos mostraram que cerca de 50% dos ovos são eliminados pela menstruação normal da mulher o que levou a consideração de que para haver a gestação alem da fecundação era necessário que o ovo fosse implantado no endométrio do útero. O ser humano, por este prisma, só poderia ser tomado como tal, não na concepção mas na nidação. A evolução da ciência levou a modificação da posição ética, não daqueles que se prendiam aos dogmas religiosos mas dos demais que se consideram em um posicionamento laico.
Em 1978, com o nascimento do primeiro bebe, dito de proveta, pois era produto de uma fertilização artificial a idéia de quando o ser biológico deveria ser considerado pessoa começou a preocupar os envolvidos com os aspectos éticos da área de saúde. O desenvolvimento tecnológico da fecundação humana extra corpórea, atingindo a possibilidade da transferência de embriões produzidos na fertilização “in vitro” para o organismo de uma mulher levou a uma percepção ética diferente.
O Conselho Federal de Medicina, no Brasil, com sua atribuição de encaminhar a trilha ética a ser seguida, elaborou, em 11 de novembro de 1992, resolução que tem número CFM 1.358, produto do pensamento da categoria médica. Assim se resolveu estabelecer o número máximo de 4 embriões a serem manipulados na reprodução artificial; o parentesco até o segundo grau entre a doadora genética e a doadora temporária do útero; o anonimato dos participantes nesses processos, assim como o
tempo máximo do desenvolvimento do pré-embrião in “vitro” de 14 dias. O consentimento informado foi estabelecido como obrigatório e extensivo a todos os participantes, assim como a ausência de finalidade comercial ou lucrativa na doação de gametas ou pré-embriões. Ficou dessa maneira estabelecido que até 14 dias após a concepção o ser biológico não é pessoa, pois na sua manipulação pode ocorrer o seu
descarte. Além do que os embriões excedentes que devam ser congelados, para não serem descartados devem permanecer congelados ad eterno. Se depois de um prazo de 5 anos ou qualquer outro que seja, forem destruídos se caracterizará um abortamento, para aqueles que entendem que o ser humano é pessoa desde a concepção.
Uma incongruência acontece, quando pessoas indagadas sobre a reprodução assistida valorizam essa técnica e indagadas sobre a liberação do abortamento se pronunciam totalmente contrárias a esse procedimento. Isso pode exemplificar que muitas vezes o emocional domina o racional nas decisões humanas.
Convém lembrar que muitas vezes durante a transferência de embriões um número maior que o desejável de embriões viáveis se desenvolve. A técnica preconiza nesses casos a redução de embriões, isto é o descarte ou a eliminação de embriões implantados, para que tenha um número ideal. Essa é uma prática bastante polêmica, pois corresponde à interrupção da gravidez com a destruição de embriões já na décima semana de gestação.
Ainda a respeito de quando o ser biológico é pessoa deve ser feita referência à chamada teoria natalista, que defende que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento. Esse posicionamento é encontrado em culturas orientais, que em uma posição mais liberal só passam a se preocupar com o novo ser depois do seu nascimento. Em parte isso ocorre também no Brasil, onde as perdas fetais e os
natimortos não recebem tratamento legal individualizado. São, unicamente, um número em uma estatística sanitária, onde ela exista e seja corretamente realizada. Em outros lugares nem isso merecem.
Em face de tudo isso é que cabe indagar quando o ser biológico deve ser considerado pessoa humana. A resposta é encontrada em uma gama de posições a partir de uma visão conservadora de predominância religiosa, fundamentalmente da igreja católica, de que o ser biológico é pessoa desde a concepção até uma posição liberal considerando-o humano só depois de seu nascimento vivo quando então se intera com as outras pessoas.